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Universidade de Brasília
ICH - Instituto de Ciências Humanas
Geografia da
Paisagem
Múltiplas Abordagens
Organizadores:
Valdir Adilson Steinke
Charlei Aparecido da Silva
Edson Soares Fialho
Brasília - DF
2022
Conselho Editorial
Membros internos:
Prof. Dr. André Cabral Honor (HIS/UnB) - Presidente
Prof. Dr. Herivelto Pereira de Souza (FIL/UnB)
Profª Drª Maria Lucia Lopes da Silva (SER/UnB)
Prof. Dr. Rafael Sânzio Araújo dos Anjos (GEA/UnB)
Membros externos:
Profª Drª Ângela Santana do Amaral (UFPE)
Prof. Dr. Fernando Quiles García (Universidad Pablo de Olavide - Espanha);
Profª Drª Ilía Alvarado-Sizzo (UniversidadAutonoma de México)
Profª Drª Joana Maria Pedro (UFSC)
Profª Drª Marine Pereira (UFABC)
Profª Drª Paula Vidal Molina (Universidad de Chile)
Prof. Dr. Peter Dews (University of Essex - Reino Unido)
Prof. Dr. Ricardo Nogueira (UFAM)
© 2022.
Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International (CC BY-NC-ND 4.0)
A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e imagens dessa obra é dos autores.
[1ª edição]
Elaboração e informações
Universidade de Brasília
ICH - Instituto de Ciências Humanas
Campus Universitário Darcy Ribeiro, ICC Norte, Mesanino Bloco 01qr Campus Universitário
Darcy Ribeiro - Asa Norte, Brasilia DF CEP: 70297-400 Brasília - DF, Brasil
E-mail: ihd@unb.brContato: (61) 3107-7364 Site: ich.unb.br
Equipe técnica
Parecerista: Marcelino de Andrade Gonçalves
Editoração: Luiz H S Cella
Revisão: Amabile Zavattini
Capa: Maria Frizarin
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília
Bibliotecário XXXX - CRB X/XXXXX
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APRESENTAÇÃO
... A origem, a sucessão das coisas e das ideias
Os diversos encontros entre colegas professores do magistério
superior e pesquisadores vinculados as nossas instituições (ainda)
públicas inevitavelmente geram conexões profissionais e pessoais (essas as
mais importantes) que levam a geração de ideias e projetos, alguns se efeti-
vam como produtos acadêmicos e tornam o trabalho mais rico e prazeroso.
Um desses encontros, talvez o primeiro, foi proporcionado no ano de 2011,
durante o XIV Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada, organizado
e realizado na UFGD ente os dias 11 e 16 de julho. Desde então, entre pro-
sas, versos, destilados, fermentados, gastronomias e muito trabalho, vários
produtos no âmbito da ciência geográfica nacional surgiram.
Uma das consequências desses diálogos foi a criação de um Grupo de
Pesquisa do CNPQ, “Estudos em Dinâmica das Paisagens”, fundado em
2011. Em razão das atividades desse grupo realizou-se o Seminário de Ge-
ografia (II SEGEO), no ano de 2012, na UERJ-FFP em São Gonçalo-RJ entre
os dias 5 e 6 de dezembro. Na ocasião as “Dinâmicas das Paisagens” foi o
tema central do seminário, que contou com a participação de pesquisado-
res de diversas universidades brasileiras, cita-se UFRJ, UFF, PUC-Rio, UFGD,
UFV, UFMG e UERJ-FFP.
Em 2014 foi proposto e realizado o III SEGEO. O seminário foi realizado
no campus Goiabeiras da UFES, na cidade de Vitória entre os dias 19 e 20 de
novembro, cuja temática fora “A abordagem multiescalar dos estudos das
paisagens”. A edição contou com a participação de pesquisadores e pós-
-graduandos da UFRGS, UFES, UFV, UGMG, UFGD e EURJ-FFP. O encontro
permitiu a elaboração e a publicação de uma edição especial da Revista
Geografia da UFMG no ano de 2015, um dossiê com trabalhos oriundos do
seminário.
Nesse caminhar passou-me estabelecer parcerias vindouras que se ma-
terializaram em publicações, participação em bancas de defesa de mestra-
dos e doutorados, missões de trabalho e trabalhos de campo, oferta de
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disciplinas em programas de pós-graduação, realização de colóquios, pa-
lestras e pequenos workshops.
Entre as ideias das conversas informais, algumas sempre surgem com
recorrência, entre elas a mais citada é sem dúvida a preocupação unanime
com a formação dos geógrafos, especialmente na base, na graduação, mas
também na pós-graduação. E neste sentido alguns aspectos estruturantes
tem sido discutidos e mencionados de modo mais frequente, como, as ba-
ses epistemológicas e metodológicas, os avanços, retrocessos e estagna-
ções de cunho conceitual, temas transversais, inserção social do geógrafo,
articulações políticas necessárias, e, ainda alguns temas que são considera-
dos como prementes de debates, como as questões climáticas e suas reper-
cussões na sociedade, as categorias de análise da ciência geográfica.
Uma das coisas que nos chamou atenção sempre era menção para a
“Paisagem”, como uma categoria de análise de grande importância para
compreensão dos fenômenos geográficos no século XXI. A provocação das
prosas era sempre a necessidade de um debate, de aprofundamento, do
reconhecimento claro e objetivo da Paisagem e sua importância no âmbi-
to das pesquisas realizadas pela Geografia brasileira e de outros países. O
olhar sobre a paisagem no Brasil e como isso se desdobra no âmbito da
analise geográfica nos parece original ou no mínimo algo hibrido que incor-
pora elementos e ideias originárias em tempos passados e de outros países.
Em que pese o “senso comum” conjecturar que este tema já tenha sido re-
solvido na escola da geografia brasileira sempre ousamos pensar que não.
E para que não haja dúvidas, sim, acreditamos que exista uma escola, a qual
denominamos aqui de Escola da Paisagem.
Portanto, com o passar destes anos e com esse pulsar da paisagem nos
debates formais (simpósios, congressos e encontros), e outros informais, ao
olharmos para o cenário nacional e as conexões internacionais, vislumbra-
mos há algum tempo a possibilidade da organização de um material para
além de nossos artigos e/ou orientações (teses e dissertações) que pudesse
contribuir nesse debate. Um material que pudesse reunir em um primeiro
momento trabalhos de grupos de pesquisas cuja temática Paisagem se dá
como eixo propositor.
Pois bem, os tempos passam, as ideias persistem e a oportunidade de
aglutinar efetivamente surge no ano de 2020, durante um marco histórico
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da humanidade, a pandemia desencadeada pela sindêmia, a qual nos co-
locou em uma situação de vulnerabilidade digna de nossa existência insig-
nificante. A pandemia SARS CoV-2/COVID-19 nos trancafiou e assolou so-
bre a sociedade os sentimentos mais obscuros de medo e insegurança, nos
exigindo ainda, seguir adiante via as conexões com os amigos (não apenas
colegas), pois foi neste momento de dificuldade que esta obra surge, como
um necessário folego para nos fazer sentirmos vivos e lutar, contra o vírus
(biológico) e o vírus mais letal (a negligência política).
Obviamente que ao lembrar dos nomes que poderiam compor esta
obra (hoje Volume. 1.) a dúvida era sempre a mesma: Será que o colega irá
aceitar o convite neste momento difícil? E com uma lista significativa em
mãos fomos aos convites, com otimismo e a coragem de fazer dar certo. As
respostas todas positivas, indicavam que sim, todos precisavam de folego,
de algo para contribuir, de um modo (insipiente) de interagir com outros e
tantos também isolados.
A ideia inicial foi plantada, com um horizonte temporal digamos que
audacioso para uma obra sem nenhum tipo de financiamento, a qual inclu-
sive tinha como ponto central a disseminação em meio digital e gratuito
para todos iniciamos esse projeto. Por óbvio que o processo de trabalho
remoto gerou inúmeros desafios e estes impactaram nos prazos originais,
no entanto, tivemos sempre a compreensão dos colegas de entender o de-
safio inicial e o propósito finalístico desta obra. Afinal uma obra destas não
tem o propósito de atender a processos produtivos na academia, tem como
finalidade dar vazão aos trabalhos desenvolvidos nas diferentes regiões do
Brasil e com convidados ilustres do estrangeiro, colegas da Espanha, Por-
tugal e Cuba.
... A Paisagem na sua multifacetada forma, o fazer
Este livro, na forma de coletânea, se inclui, como descrito nos primeiros
parágrafos,
,espacial e uma articulação que
não são casuais; o espaço, suporte espacial da distribuição dos componen-
tes da paisagem e onde se manifestam as relações entre eles; e, por fim, a
globalidade, uma vez que a paisagem só se pode entender segundo uma
perspetiva global, “pois é o conjunto de todos os elementos inscritos na-
quele espaço e organizados segundo determinada maneira, que lhe dá a
unidade percetível pelo observador” (pág. 20).
Da sistematização destes pressupostos, o autor refere que “estamos
perante uma paisagem quando um determinado trecho da superfície ter-
restre é composto por elementos cuja organização concorre para que, ao
termos dele uma visão global, percebamos a existência duma unidade niti-
damente individualizada dos espaços envolventes” (pág. 20).
Da evolução das ideias e metodologias relacionadas com a paisagem
e o seu estudo por parte de diversas áreas do conhecimento surgiram, na
segunda metade do século XX, alguns conceitos importantes, que se têm
vindo a impor na âmbito dos estudos da paisagem. Um deles corresponde
ao conceito de unidade de paisagem.
No contexto da identificação de unidade de paisagem, especialmente
no âmbito da Ecologia da Paisagem, mas também no da Geografia (Ca-
simiro, 2000), vários contributos foram sendo feitos. Com efeito, a defini-
ção de diferentes estruturas espaciais em função do estabelecimento de
inter-relações distintas/diferenciadas entre os elementos da paisagem, vai
conduzir a uma diversificação das paisagens, permitindo a identificação de
diferentes unidades de paisagem, que se podem definir como “áreas com
características relativamente hom*ogéneas, com um padrão específico que
se repete no seu interior e que as diferencia das suas envolventes” (Abreu
2 “Geossistema” é definido por Beroutchachvili e Bertrand (1978) como um «système géo-
graphique naturel hom*ogène lié à un territoire» (pág. 171).
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et al., 2004, pág.10).
Zonneveld (1979, cit. por Filho, 1998) introduziu a expressão unidade
de paisagem (land unit) entendida como a expressão da paisagem de acor-
do com uma visão sistémica, definindo-a como um trecho da superfície ter-
restre ecologicamente hom*ogéneo a uma determinada escala de análise.
Para a identificação das unidades de paisagem ter-se-iam em consideração
os elementos relevo, solo e vegetação, bem como a sua alteração por ação
do Homem.
Naveh e Lieberman (1984, cit. por Abreu et al., 2004), por seu lado,
definem unidade de paisagem como “uma área que pode ser cartografa-
da, relativamente hom*ogénea quanto a solo, topografia, clima e potencial
biológico, cujas margens são determinadas pela mudança numa ou mais
características”.
A análise da paisagem e da sua dinâmica pressupõe, do ponto de vista
da Ecologia da Paisagem, a distinção de três características fundamentais:
a estrutura, definida pelas relações espaciais que se estabelecem entre os
diversos elementos; a função, correspondente às interações entre os ele-
mentos espaciais; e a mudança, relacionada com a alteração na estrutura e
função do mosaico paisagístico ao longo do tempo (Casimiro, 2002, pág.
393).
Neste sentido, a análise da paisagem comporta “o estudo dos padrões
da paisagem, das interações entre manchas num mosaico de paisagem e
a forma pela qual estes padrões e interações mudam no tempo [...] consi-
dera o desenvolvimento e dinâmica da heterogeneidade espacial e os seus
efeitos nos processos ecológicos” (Risser, 1984, cit. por Casimiro, 2002),
considerando que os padrões dos elementos da paisagem (nomeadamente
das manchas) influenciam, de forma determinante, as características ecoló-
gicas. Para proceder à compreensão da função e mudança da paisagem, na
relação entre as várias unidades espaciais, torna-se, portanto, indispensável
quantificar a sua estrutura.
A estrutura da paisagem é caracterizada por três tipos de elementos
fundamentais:
- as manchas (patches) correspondentes a uma “superfície não linear,
diferindo em aparência da sua vizinhança. As manchas variam largamente
em termos de tamanho, forma, tipo, heterogeneidade e características de
fronteira. Além disso, as manchas estão por vezes embebidas numa matriz,
área circundante que possui uma diferente estrutura de espécies ou com-
posição” (Forman e Godron, 1986, pág. 83). As manchas são influenciadas
por algumas características importantes como o seu tamanho, uma vez que
a dimensão da mancha condiciona a dinâmica e os fluxos de energia e
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nutrientes, e a forma, que interfere diretamente com o efeito de margem,
importante ao nível da biodiversidade e da dinâmica aí presentes;
- os corredores, que correspondem a elementos lineares que promo-
vem a mobilidade (de bens, pessoas, energia...) através da paisagem, sen-
do que o “uso de corredores para efeitos de transporte, proteção, recursos
e efeitos estéticos penetra quase todas as paisagens de uma forma ou de
outra” (Forman e Godron, 1986);
- a matriz, que “constitui, embora não de uma forma aparente, o ele-
mento mais importante para a análise e compreensão efetiva da estrutura
da paisagem. (...) é o tipo de paisagem mais extenso e mais conectado, que
portanto desempenha um papel dominante no funcionamento da paisa-
gem” (Casimiro, 2002, pág. 412).
A análise e quantificação destes elementos fundamentais da paisagem
passa pela definição de índices da paisagem (Casimiro, 2002), que se ba-
seiam na análise da distribuição, forma e arranjo espacial das manchas.
Trata-se de uma vertente da análise da paisagem comum na Ecologia
da paisagem, mas também utilizada no contexto de estudos geográficos,
utilizando um conjunto diversificado de métricas da paisagem (Gustafson,
1998; Antrop e Van Eetvelde, 2000), implementadas em softwares especí-
ficos ou suportados em sistemas de informação geográfica (McGarigal e
Marks, 1995; Elkie et al., 1999; Viser e Nijs, 2006), e aplicadas quer ao pla-
neamento e ordenamento do território e da paisagem, quer à avaliação da
paisagem e à análise da dinâmica das paisagens.
Outro conceito que tem vindo a ganhar relevância é o de caráter da
paisagem, correspondente ao resultado da atuação dos múltiplos fatores
que compõem uma paisagem e sua combinação, dando-lhe uma coerência
distinta das que a envolvem, permitindo o estabelecimento de uma iden-
tidade local (Abreu et al., 2004), revelando-se dinâmico e em contínua mu-
dança, mas apresentando-se como único para cada local (Pinto-Correia et
al., 2001). Este conceito seria incorporado na Convenção Europeia da Pai-
sagem, que define paisagem como “uma parte do território, tal como é
apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da acção e da inter-ac-
ção de factores naturais e/ou humanos” (Council of Europe, 2000).
43
2. OS CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DA PAISAGEM EM
PORTUGAL, NUMA PERSPETIVA
EMINENTEMENTE GEOGRÁFICA
2.1. ESTUDOS GEOGRÁFICOS PIONEIROS
Os primeiros trabalhos geográficos apresentaram-se, muito por influ-
ência da escola regional francesa, como estudos regionais e incorporando
uma grande abrangência de dimensões geográficas, que iam desde a cara-
terização do relevo, clima ou vegetação, até à dimensão mais social, inte-
grando as componentes demográficas, atividades económicas e até mesmo
etnográficas. Não é de estranhar, portanto, que estes estudos geográficos
reunissem, frequentemente, informação suficiente para que se pudesse
consubstanciar uma caraterização mais ou menos pormenorizada da pai-
sagem das áreas em estudo (por vezes até extensivamente desenvolvida)
permitindo uma clara definição das paisagens em análise e sua distinção
quando em territórios mais abrangentes.
Tratam-se de trabalhos de cariz eminentemente monográfico, onde as
diversas dimensões geográficas eram tratadas, conferindo uma perspetiva
mais abrangente da análise das caraterísticas dos territórios em estudo.
São exemplos disso as primeiras dissertações de doutoramento em
Geografia (ou em Ciências Geográficas) desenvolvidas em Portugal nas pri-
meiras décadas do século XX, nomeadamente
,as elaboradas por Amorim
Girão (1922), Virgílio Taborda (1932) e Orlando Ribeiro (1935).
A primeira, debruçando-se sobre “A bacia do Vouga”, apresenta-nos
uma caraterização física da área em estudo, abordando a “natureza dos
terrenos”, o “relêvo do solo”, a “hidrografia e acidentes litorais”, o “cli-
ma”, seguindo-se-lhes as “associações vegetais e animais” e os aspetos
humanos do território, nomeadamente os relacionados com a “população”
e a “ocupação do solo”. Aspeto de destaque, à giza de “Conclusão”, a in-
clusão de uma identificação e caraterização daquilo que o autor designa de
“regiões naturais”. A este propósito refere Amorim Girão que é “a região
natural, somatório de todos os aspectos de superfície, «resultado», para nos
servirmos da expressão de BRUNHES, da combinação dêsses mesmos as-
pectos”. Recorrendo às caraterísticas físicas e humanas presentes nos terri-
tórios estudados, faz uma identificação e caraterização das regiões naturais
e sub-regiões da bacia do Vouga, traduzindo-se tal trabalho na carateriza-
ção das paisagens aí presentes naquele primeiro quartel do século XX. Mais
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tarde viria a estender a metodologia, a uma escala mais abrangente, para
identificar as regiões de Portugal continental.
Também Virgílio Taborda promove uma caraterização física e humana
do território de Trás-os-Montes, num trabalho igualmente de caraterísticas
monográficas, definindo as linhas gerais que caraterizam as paisagens tipi-
camente transmontanas.
Por seu lado, Orlando Ribeiro expõe, na sua dissertação sobre “A serra
da Arrábida” (1935, 1986 reed.) os elementos marcantes e caraterísticos da
sua paisagem, fazendo referência quer à “Arquitetura do solo”, aos “Fa-
tores do relêvo” e “Formas do relêvo”, ao “Litoral” e ao “Clima e vegeta-
ção”, enquadrando os fatores físicos que caraterizam a Serra da Arrábida,
quer a “Alguns aspetos da geografia humana”, onde considera os aspetos
de ocupação do território, população e aspetos económicos e culturais.
Conclui que “…a Arrábida é estremenha pela morfologia do solo e
pelos aspectos da ocupação humana; pelo clima e pela vegetação difere
muito das regiões mais próximas (…) – uma nesga mediterrânea entre terras
e águas atlânticas.” (pág. 83).
Contudo, mais marcante que a sua tese de doutoramento, no que ao
tratamento do tema da paisagem diz respeito, foi sem dúvida o livro “Portu-
gal, o Atlântico e o Mediterrâneo” que estabelece uma descrição das paisa-
gens em Portugal continental, constituindo um marco na análise e descrição
das paisagens de Portugal continental, fundamentada num conhecimento
profundo do território, das suas gentes e das dinâmicas existentes ao tem-
po em que foi escrito. Sem dúvida, um documento geográfico fundamental
e único para a caraterização das paisagens do nosso território.
2.2. Os exercícios de identificação de tipos de paisagens em Portugal
Relativamente aos estudos da paisagem realizados em Portugal, ainda
que não possamos dizer que a produção tenha sido muito profícua ou que
tenha contribuído de forma significativa para a discussão dos conceitos e
pressupostos teóricos que balizam a sua investigação, especialmente numa
primeira fase e num contexto internacional, a realidade é que surgiram,
ainda assim, alguns contributos importantes, além dos trabalhos pioneiros
referidos anteriormente, para a compreensão das paisagens e sua organiza-
ção no contexto do território continental português.
Com efeito, os principais contributos realizados em Portugal para o es-
tudo da paisagem direcionaram-se essencialmente para a caraterização da
paisagem do território nacional e identificação das unidades de paisagem
que o compõem.
As divisões regionais propostas para o território nacional por diver-
45
sos autores, como Barros Gomes (1875), Amorim Girão (1930, 1933) ou
Orlando Ribeiro (1945), traduzem já, de certa forma, as características do
território, resultado das cambiantes físicas e humanas que caracterizam as
diversas paisagens. É claro que estas propostas suscitaram, no seu tempo,
alguma discussão, dada a falta de consenso inerente à própria subjetivida-
de da análise, que está subjacente à metodologia e aos fatores utilizados
e também devido à própria dinâmica da paisagem e dos seus elementos.
No entanto, consideramos importante a análise destas divisões regionais
que traduzem, no fundo, também divisões da paisagem, desenvolvidas por
geógrafos ou investigadores de áreas científicas próximas, que acabaram
por contribuir para a discussão em torno da problemática da paisagem em
Portugal.
Barros Gomes, ainda que silvicultor de formação, já no final do século
XIX, propunha uma divisão de Portugal, na sua “Carta orográfica e regio-
nal” (incluída nas “Cartas elementares de Portugal para uso das escolas”,
1875), baseada em fatores essencialmente físicos/naturais: latitude, exposi-
ção e relevo. Esta carta identificava em
Portugal doze regiões (Fig. 1), definin-
do dois eixos principais que estabele-
ciam segmentação entre o “norte do
Tejo” e o “sul do Tejo” e entre o litoral
e o interior.
Referia B. Barros Gomes (1878) que
“se basearmos uma divisão regional do
paiz puramente n’estas condições de
latitude, exposição e relevo, teremos
um ponto de partida seguro para es-
tudos sociaes de primeira ordem. Te-
remos achado as causas determinantes
dos nossos climas locaes e com ellas as
differenças principaes que entre elles
se possam notar”.
Ainda que claramente orientada
por fatores exclusivamente naturais
(seguindo, se quisermos, a linha natu-
ralista de classificação das paisagens
promovida por Humboldt), esta divisão
regional de Portugal continental fazia
transparecer claramente aspetos gerais
de caraterização das paisagens da épo-
Figura 1. Carta orográfica e regio-
nal de B. Barros Gomes (1878)
46
ca. Ainda que sem o rigor necessário para uma definição exata das regiões
que reuniam caraterísticas similares e identitárias, cada uma incluía carate-
res claramente distintivos das demais “unidades de paisagem”.
Amorim Girão (1933) viria a referir-se à Carta orográfica e regional, ad-
jetivando-a de “a mais perfeita sem dúvida de tôdas as que possuímos”,
apontando que representaria “para a época em que foi publicada um acen-
tuado progresso no conhecimento das condições físicas e climatéricas do
nosso território”, mas contrapondo que necessitava “sofrer algumas modi-
ficações, além de ser omissa quanto às divisões menores” (pág. XIV).
É, efetivamente, já no século XX que Amorim Girão retoma esta pro-
blemática e define uma divisão do território nacional na “Carta Regional
de Portugal” (1930; 1933), tendo a preocupação de introduzir fatores de
natureza socio-económica (que estariam na base de algumas críticas), apre-
sentando treze regiões. Apesar do objetivo de divisão regional do território
nacional, a perceção quer de Amorim Girão quer de Barros Gomes é guia-
da pela ideia de hom*ogeneidade dos
elementos que constituem as diferentes
regiões e, consequentemente, carateri-
zam as paisagens que lhe são inerentes
(e que as caraterizam).
Na proposta que apresenta (Fig. 2),
Amorim Girão (1933) afirma que o que
apresenta é “um esboço de carta regio-
nal em que todos os elementos e facto-
res que se inscrevem sôbre a superfície
do solo foram tomados em considera-
ção, desde a constituição geológica dos
terrenos e suas feições geográficas do
relevo, clima, hidrografia e associações
vegetais – caracteres chamados natu-
rais – até ao revestimento humano nas
formas sempre tão contingentes da sua
adaptação ao meio, e nas diversas mani-
festações da sua actividade modificado-
ra – caracteres estes tão naturais como
aqueles” (pág. XVIII).
Neste contexto o autor reforça a
importância do conceito de região geo-
gráfica, sinónimo de “tôda a fracção ter-
ritorial em que o homem intervém como
Figura 2. Carta regional de Amorim
Girão (1933)
47
elemento integrante da paisagem e agente modificador da superfície; (…)
é sempre a expressão última da
,interdependência e reciprocidade dos di-
versos elementos e factores que sôbre um determinado território exercem
a sua influência – a constituição geológica dos terrenos, o relêvo do solo, o
clima, as associações vegetais e animais, o homem, finalmente” (pág. 23).
Em 1937 Herman Lautensach apresentou, também, um esboço de di-
visão regional (Fig. 3), tendo como fator fundamental de definição das re-
giões a morfologia, a distribuição das massas de relevo no território conti-
nental de Portugal. Esta abordagem fica bem patente pela individualização
da unidade “Cordilheira Central”, claramente associada à morfologia e es-
trutura características desta região de Portugal, que condiciona de forma
determinante a paisagem.
Em 1945 o reconhecido geógrafo Orlando
Ribeiro elabora uma divisão geográfica de Por-
tugal continental (Fig. 4), “que constitui uma sín-
tese de altíssimo interesse baseada não só em
moderna metodologia científica como também
num profundo conhecimento do território” (Cal-
das e Loureiro, 1966, pág. 129). A respeito desta
caracterização das regiões portuguesas e, con-
sequentemente, das suas paisagens, Orlando Ri-
beiro (1998, 7ª Ed.) refere: “uma região geográfi-
ca caracteriza-se por certa identidade de aspetos
comuns a toda ela. Não apenas as condições ge-
rais de clima e posição, mas ainda as particulari-
dades da natureza e do relevo do solo, o manto
vegetal e as marcas da presença humana, nos
darão o sentimento de não sairmos da mesma
terra. A consciência desse facto entre os habi-
tantes traduz-se muitas vezes por uma apelação
regional; mas nem sempre regiões tradicionais
ou circunscrições administrativas coincidem com
regiões geográficas” (pág. 140).
Figura 3. Carta regional de Portugal de Herman
Lautensach (1937)
48
Figura 4. Carta das divisões geográficas da autoria de Orlando Ribeiro (1998, 7ª Ed.)
Também J. Pina Manique e Albuquerque apresentou uma divisão do
território nacional, baseada essencialmente em critérios ecológicos, defi-
nindo regiões naturais. No Atlas do Ambiente é reproduzida uma carta (Car-
ta das regiões naturais de Portugal Continental – Fig. 5) que traduz a divisão
elaborada pelo autor. Apesar de identificar os diferentes tipos de paisagem
existentes em Portugal continental, a carta não é acompanhada de notí-
cia explicativa, não permitindo esclarecer quais os pressupostos utilizados
para a sua elaboração, que se basearão, segundo Pinto-Correia (2005), em
trabalhos anteriores do autor desenvolvidos em 1954 e 1961, relacionados
com a elaboração da carta ecológica de Portugal e a divisão regional do
continente português, respetivamente.
49
Mais recentemente, com o objetivo
de identificar as unidades de paisagem
em Portugal continental na atualida-
de, Abreu et al. (2004) elaboraram um
estudo, intitulado “Contributos para a
identificação e caracterização da paisa-
gem de Portugal continental”, no qual
procederam à realização de uma carto-
grafia de unidades de paisagem. Foram,
assim, individualizadas 128 unidade de
paisagem, reunidas em 22 grupos de
paisagens (Fig. 6)
Tendo como objetivo geral a
compreensão da paisagem, os au-
tores adotaram “uma abordagem
holística, integrando as suas várias
dimensões: a ecológica, que inclui
as componentes físicas e biológi-
cas dos ecossistemas; a cultural,
em que são considerados tanto os
fatores históricos como as ques-
tões de identidade e capacidade
narrativa da paisagem; a socioeco-
nómica, referente aos fatores so-
ciais e às atividades humanas que
permanentemente constroem e al-
Figura 5. Carta das regiões naturais elabo-
rada por J. de Pina Manique e Albuquer-
que (Fonte: Atlas do Ambiente, 1985)
Figura 6. Unidades e grupos de unidades
de paisagem em Portugal Continental
(extraído de Abreu et al., 2004)
50
teram a paisagem (também os regulamentos e instrumentos que condicio-
nam tais atividades); e, finalmente, a dimensão sensorial, ligada ao modo
como as paisagens são apreciadas por diferentes pessoas ou grupos de
pessoas” (pág. 10).
É importante referir que os autores consideraram como unidades de
paisagem, para este estudo, “as áreas com caraterísticas relativamente ho-
mogéneas, não por serem exatamente iguais em toda a sua superfície, mas
por terem um padrão específico que diferencia a unidade em causa das
envolventes” (pág. 32). Os autores consideraram, ainda, “que devia existir
coerência interna (…) e um carácter próprio, identificável do interior e do
exterior e, eventualmente, associado às representações da paisagem mais
fortes na identidade local e/ou regional”.
O processo de análise das unidades de paisagem baseou-se numa me-
todologia “fundamentada na Análise de Clusters, que pressupõe um con-
junto vasto de procedimentos de análise espacial em Sistemas de Informa-
ção Geográfica, associados a Estatística
Multivariada” (Abreu et al., 2004, pág.
58) (Fig. 7).
Apesar da importância da sistema-
tização desenvolvida, os próprios auto-
res referem que este trabalho “constitui
mais uma base de reflexão para a com-
preensão e conhecimento das paisa-
gens portuguesas, deixando em aberto
várias pistas para aprofundamentos fu-
turos” (Pinto-Correia et al., 2001, pág.
205).
2.3. A RECENTE
DIVERSIFICAÇÃO DOS
ESTUDOS DA PAISAGEM
E DAS PERSPETIVAS DE ANÁLISE
As últimas décadas do séc. XX e inícios do séc. XXI viram crescer, de
forma exponencial, a investigação sobre a paisagem nas diversas áreas cien-
tíficas e também na Geografia. O âmbito deste trabalho não nos permite
fazer uma análise exaustiva das inúmeras contribuições que têm sido feitas,
Figura 7. Síntese da modelação espacial (extraído de Abreu et
al., 2004)
51
pelo que iremos salientar as que nos parecem mais relevantes.
Gaspar (1993), num trabalho intitulado “As regiões portuguesas”, evi-
dencia a importância da paisagem na definição das diferentes regiões de
Portugal, referindo que aquela é um poderoso elemento de identificação
cultural, comparável à língua e à religião. Uma obra que sistematiza um
vasto conjunto de informações (nomeadamente estatística, mas também
aspetos físicos e históricos) nas quais se baseia para a individualização das
várias unidades consideradas.
Um outro contributo importante foi dado por Campar de Almeida que,
após desenvolver a problemática da paisagem numa perspetiva ecológica
na sua tese de doutoramento sobre as Dunas de Quiaios, Gândara e Serra
da Boa Viagem (Centro litoral de Portugal), promoveu, à imagem dos tra-
balhos de Kevin Lynch, K. D. Fines e A. Bailly, uma avaliação do valor da
paisagem, apoiada na perspetiva do observador, aplicada a duas áreas tam-
bém do centro litoral de Portugal (Almeida, 1999a, 1999b, respetivamen-
te). Através da aplicação de inquéritos, procedeu ao “reconhecimento das
paisagens mais qualificadas” e identificou os “indicadores mais valorativos
dessa paisagem” (Almeida, 2006, pág. 35). Idêntico exercício foi aplicado
por Vieira (2001), no contexto da avaliação da qualidade da paisagem para
a prática turística na Serra de Montemuro, considerando diversos fatores
abióticos, bióticos, antrópicos e potencialidades paisagísticas para a prática
do turismo.
Noutra perspetiva se apresenta o trabalho desenvolvido por Casimi-
ro (2002) e aplicado ao concelho de Mértola, que explora a aplicação de
métricas da paisagem, baseada nos conceitos da Ecologia da Paisagem,
de forma a compreender as dinâmicas ocorridas na paisagem e analisar os
seus padrões espaciais. Estas metodologias têm vindo a ser aplicadas por
outros autores (Viana e Aranha, 2008; Vieira, 2008; Cruz et al., 2013), cons-
tatando-se a pertinência destas metodologias para o apoio à caraterização
das paisagens, especificamente no que à sua dinâmica e padrões de ocor-
rência diz respeito.
Uma publicação que consideramos importante também referir aqui,
especialmente pela diversidade de abordagens e de autores envolvidos e
por um certo carácter de síntese que apresenta, é o volume 36, número 72
da revista Finisterra, especificamente
,dedicado à Paisagem, publicado em
2001. Associado à comemoração dos 35 anos desta revista e ao evento or-
ganizado para o efeito sob o tema da Paisagem, permitiu a reunião de um
conjunto de textos relativos à temática em causa.
Das diversas contribuições, de realçar a abordagem feita por Salguei-
ro (2001), que analisa a evolução do conceito e dos estudos da paisagem,
52
salientando a importância da paisagem na Geografia e identificando as di-
ferentes perspetivas que se foram desenvolvendo, referindo, no que diz
respeito às correntes atuais, o destaque que tem vindo a ganhar a perspe-
tiva essencialmente subjetiva, em que “a paisagem é essencialmente uma
construção mental a partir da percepção e vivência no território” (pág. 44).
Também Gaspar (2001), fazendo uma resenha evolutiva dos estudos
da paisagem, reforça as novas perspetivas de análise, focadas nas “«novas»
dimensões sensoriais da paisagem: a olfativa, a sonora e a táctil” (pág. 83),
referindo-se também às paisagens biográficas e/ou literárias.
Nesta sequência, é interessante trazer também aqui a perspetiva das
paisagens fílmicas, de que são exemplo os trabalhos de Azevedo (2005,
2006), explorando a produção e o universo fílmico português, desde o pe-
ríodo do cinema mudo até ao contemporâneo (2006).
3. ASPETOS CONCLUSIVOS
O presente texto claramente não faz justiça ao significativo contributo
que a Geografia e os diversos geógrafos deram para o estudo da paisagem
em Portugal. Tratando-se de uma síntese, muito ficou por dizer e muitos
ficaram por citar, especialmente os inúmeros geógrafos que têm, nestas
últimas décadas, contribuído para a diversificação das formas de análise da
paisagem e das multiplicidade de contributos que têm vindo a público.
Contudo, estas breves notas permitem-nos ter uma perceção do ca-
minho trilhado nesta temática em Portugal e das referências maiores que
fizeram evoluir o conhecimento neste que é um objeto de estudo maior da
Geografia.
Efetivamente, a paisagem é objeto de estudo da geografia! Como re-
fere Medeiros (2001), “uma das mais penetrantes e, ao mesmo tempo, mais
simples definições de geografia (…) era a de «descrição e interpretação das
paisagens da superfície terrestre»” (pág. 27).
Em jeito de conclusão, sobressai, desta síntese, que ainda que a pers-
petiva naturalista tenha dominado durante um longo tempo na análise da
paisagem em Portugal e ainda esteja muito presente, especialmente no
âmbito do planeamento do território, diferentes perspetivas, com um cará-
ter mais subjetivo, se têm vindo a evidenciar e a ganhar protagonismo nas
ultimas décadas, diversificando as formas de perceber a paisagem no con-
texto geográfico português.
Acompanhando aquele que foi o desenvolvimento do estudo da paisa-
53
gem a nível internacional, também em Portugal se observou uma significa-
tiva dinâmica ao nível das perspetivas e abordagens do tema, pautada por
compassos, mais curtos ou mais longos, de estagnação ou aceleração da
investigação, mas promovendo o avanço do conhecimento e sua integra-
ção em diversas áreas da sociedade, também promovido por outras áreas
científicas. De facto, não podemos deixar de referir o importante contributo
que todos os diversos estudos desenvolvidos sobre a paisagem, também
no âmbito da Geografia, têm dado na definição de políticas públicas e de
planeamento e gestão do território, integrando a valorização da paisagem
e sua proteção.
A nível nacional, de referir a Constituição da República Portuguesa,
que no seu artigo 66 refere que é “dever do Estado classificar e proteger a
paisagem e promover a sua gestão para garantir o equilíbrio do território”.
Também a Lei de Bases do Ambiente, na sua versão de 1987, definia o con-
ceito de paisagem e referia a necessidade de criação de instrumentos para
a sua gestão. Na atual Lei de Bases do Ambiente, de 2014, a paisagem é
considerada como um dos componentes ambientais naturais, reconhecen-
do a necessidade da sua salvaguarda, através da “preservação da identi-
dade estética e visual, e da autenticidade do património natural, do patri-
mónio construído e dos lugares que suportam os sistemas socioculturais,
contribuindo para a conservação das especificidades das diversas regiões
que conjuntamente formam a identidade nacional” (artigo 10º, alínea f).
A nível europeu, a Convenção Europeia da Paisagem constitui-se como
uma ferramenta fundamental para a promoção do ordenamento e gestão
da paisagem. Com efeito, quer fomentando a definição e aplicação de po-
líticas públicas conducentes à sua adequada gestão, quer estabelecendo
mecanismos para o seu reconhecimento como património natural e cultural,
a Convenção Europeia da Paisagem desempenha um papel extremamente
relevante, contribuindo, também, para a valorização da identidade cultural
europeia e da qualidade de vida das populações (Abreu et al., 2004).
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ECOLOGIA DA PAISAGEM
E GEOGRAFIA
Carlos Hiroo Saito
INTRODUÇÃO
A paisagem, como um constructo acadêmico, reveste-se de grande com-
plexidade e expressa as qualidades e as contradições inerentes ao campo da
ciência, sobretudo no que se refere a aspectos da disciplinaridade, da verticali-
zação e da fragmentação do conhecimento, bem como da valorização da mate-
matização como prova do rigor científico.
Assim, num primeiro passo introdutório, propõe-se apresentar alguns ele-
mentos que situam a paisagem junto aos domínios da ecologia da paisagem
e da geografia, e as questões suscitadas segundo a filiação a uma abordagem
ecológica ou geográfica, entendida aqui como geográfica-humanista.
Apesar do geógrafo alemão Carl Troll ter defendido que a ecologia da pai-
sagem poderia representar a unificação de princípios das ciências da natureza e
da terra (TROLL, 1939) e promover uma combinação da abordagem horizontal
do geógrafo com a abordagem vertical da ecologia tradicional (TROLL, 1971),
expressa pelos seus atributos ecológicos, o que se viu ao longo das décadas foi
o distanciamento entre ecologia da paisagem e geografia.
De forma simplificada, poder-se-ia dizer que a abordagem geográfica inclui
a dimensão humana e as práticas sociais e culturais de uso da terra, e os padrões
espaciais refletiriam esses aspectos socioculturais. Para Metzger (2001), essa
abordagem, que ele designa como sendo o primeiro nascimento da ecologia
da paisagem, teria tido forte influência da geografia humana, da fitossociologia
e da biogeografia, e de disciplinas da geografia ou da arquitetura relacionadas
ao planejamento regional. Para esse autor, essa abordagem geográfica seria ca-
racterizada por três pontos fundamentais: a possibilidade de atender ao planeja-
mento territorial; a compreensão das paisagens transformadas pelo homem, ou
seja, as chamadas “paisagens culturais”; e a análise de amplas áreas espaciais,
com atenção às questões de macroescalas.
Já na abordagem ecológica, com grande preponderância de foco nas pai-
sagens naturais e na conservação da biodiversidade, há uma valorização dos
57
elementos da natureza como constituintes da paisagem. Para Metzger
(2001), essa abordagem corresponderia a um segundo nascimento da eco-
logia da paisagem, ocorrido na década de 1980. A abordagem ecológica
seria herdeira principalmente da Biogeografia de Ilhas e das tentativas de
incorporação dessa como teoria-guia para delimitação de áreas protegidas
e proteção da biodiversidade (DIAMOND, 1975). A abordagem ecológica
seria, ainda, influenciada pela ecologia de ecossistemas e pela modelagem
e análise espacial, beneficiada pelas geotecnologias. Diferentemente da
abordagem geográfica, essa abordagem não enfatiza necessariamente ma-
croescalas, apresentando interesse, numa primeira aproximação, no reco-
nhecimento de componentes estruturais, sua morfologia e disposição es-
pacial. Vem daí a conclusão do viés estruturalista na ecologia da paisagem
(SAITO, 1998), que prioriza a identificação/reconhecimento dos elementos
visíveis da paisagem para então quantificá-los por métricas e estabelecer
relações entre eles. Rose (2002) acrescenta que os estudos de paisagem
continuam a depender das justificativas estruturais para explicar como as
paisagens existem.
A lembrança do estruturalismo é cabível por representar uma forma
de teorizar a descontinuidade do mundo, como o historicismo ou evolucio-
nismo pretendiam tratar da continuidade do fenômeno, ou seja, tratar do
fenômeno como continuidade (LEPARGNEUR, 1972). Ao pensar a ecologia
da paisagem como filiada ao estruturalismo, é preciso resgatar três pres-
supostos de um arquétipo estrutural (um meta-modelo) transponível para
essa situação, trazidos por Eco (1991): a universalidade, ou seja, se funcio-
nam universalmente por terem sido construídos para funcionarem univer-
salmente; a perenidade, tal que o modelo seja preexistente e ao mesmo
tempo, genérico; e a exclusividade, em que busca-se encontrar a essência
do objeto, de forma que o modelo construído corresponda à única forma
de explicar a realidade.
Para Saito (1998), essa proximidade entre ecologia da paisagem e es-
truturalismo passa a exigir alguns cuidados no desenvolvimento de pesqui-
sas, pois os três pressupostos anteriormente citados acabam por conferir à
ecologia da paisagem aparente independência da relação sujeito-objeto, o
que representa a objetificação da paisagem.
Cosgrove (1985) comenta que justamente as mesmas razões que fize-
ram a paisagem ser rejeitada por seus predecessores levaram à retomada
do interesse de geógrafos pelo conceito de paisagem, apontando para seus
aspectos holísticos, experienciais e humanos da relação com o ambiente,
mais que sua objetificação e a valorização dos aspectos mecanicistas dessas
relações fortificadas
,pela divisão cartesiana entre sujeito e objeto. Talvez
58
por isso Bertrand (1978) avalie que a paisagem se exclui das categorias
científicas tradicionais, não podendo ser um conceito e não podendo se
tornar um, dada sua complexidade.
Postas essas questões introdutórias, propõe-se apresentar o(s) concei-
to(s) de paisagem segundo diferentes escolas de pensamento, destacando
os elementos-chave presentes nas conceituações. Na sequência à apresen-
tação do conceito (ou conceitos), reflete-se sobre os limites conceituais e de
aplicação, bem como sobre os desafios por conseguinte postos ao debate
acadêmico sobre paisagem. Finalmente, a partir da discussão dos limites e
desafios pretende-se retomar alguns aspectos introdutórios em favor da sua
contextualização frente ao desenvolvimento sustentável.
A PROPÓSITO DA DEFINIÇÃO DE PAISAGEM
Em função das controvérsias em torno da abordagem, pode-se apre-
sentar múltiplas e diferenciadas definições de paisagem, o que é admitido
por diferentes autores.
A primeira dessas definições vem apresentada por Antrop (2000), ba-
seado em Zonneveld (1995), como sendo a visão de paisagem proveniente
de Alexander von Humboldt em que a paisagem representaria o caráter
total de uma região da terra (‘Landschaft ist das Totalcharakter einer Erdge-
gend’).
Wu (2012, p. 5776-5777), como parte da descrição enciclopédica do
estado da arte em paisagem, sistematiza um conjunto de definições sobre
paisagem. Para esse autor, o geógrafo alemão Carl Troll teria cunhado o
termo “ecologia da paisagem” em 1939 e o definido em 1968 como sendo
o estudo das principais relações causais complexas entre as comunidades
de vida e seu ambiente em uma determinada seção de uma paisagem,
sendo que essas relações seriam expressas regionalmente em um padrão
de distribuição definido (mosaico de paisagem, padrão de paisagem) e em
uma regionalização natural em várias ordens de magnitude (TROLL, 1968
apud TROLL, 1971). No entanto, Minca (2007) aponta que haveria uma pu-
blicação anterior a essa, de Carl O. Sauer (1925), tratando do termo como
sendo uma forma de terreno em que o processo de modelagem não é con-
siderado simplesmente físico, mas por uma associação distinta de formas,
tanto físicas quanto culturais, levando-a a ter uma constituição reconhecível,
limites e relação genérica com outras paisagens que constituem um sistema
geral. Minca (2007) também reforça a anterioridade de Humboldt, inclusive
analisando como e porque teria ocorrido o forçado esquecimento desse
59
autor na história do conceito de paisagem.
Wu (2012), em sua enumeração de conceitos, também aponta que
Zonneveld (1972) teria afirmado ser a ecologia da paisagem um aspecto do
estudo geográfico que considera a paisagem como uma entidade holística,
composta de diferentes elementos, todos influenciando uns aos outros, in-
dicando, portanto, que a terra seria estudada como o ‘caráter total de uma
região’, e não em termos dos aspectos separados de seus elementos com-
ponentes. Já para Naveh e Liberman (1994), a ecologia da paisagem repre-
sentaria um ramo jovem da ecologia moderna que lida com a interrelação
entre o homem e suas paisagens abertas e construídas com base na teoria
geral dos sistemas, biocibernética e ecossistema, em que as paisagens cor-
responderiam, nesse contexto, a entidades naturais e culturais tangíveis e
heterogêneas, intimamente interligadas entre si. Outra definição indicaria a
paisagem como uma área com quilômetros de extensão onde um aglome-
rado de povoamentos ou ecossistemas em interação se repetiria de forma
semelhante, de tal maneira que a ecologia da paisagem se debruçaria so-
bre o estudo da estrutura, função e desenvolvimento das paisagens (FOR-
MAN, 1981; FORMAN; GODRON, 1986). Trata-se de definição próxima da
trazida por Risser et al. (1984), segundo a qual a ecologia da paisagem teria
foco explicitamente no padrão espacial, considerando o desenvolvimento
e a dinâmica da heterogeneidade espacial, as interações e trocas espaciais
e temporais ao longo de paisagens heterogêneas, as influências da hetero-
geneidade espacial nos processos bióticos e abióticos, e a gestão da hete-
rogeneidade espacial. Os autores concluíram que a ecologia da paisagem
não seria uma disciplina distinta ou simplesmente um ramo da ecologia,
mas representaria a intersecção sintética de muitas disciplinas relacionadas,
que privilegiariam o padrão espaço-temporal da paisagem. Nessa listagem
de Wu (2012), consta também a definição trazida por Pickett e Cadenasso
(1995) de que a ecologia da paisagem seria o estudo dos efeitos recíprocos
do padrão espacial nos processos ecológicos e as maneiras pelas quais os
fluxos são controlados dentro de matrizes heterogêneas. Assim, essa defi-
nição também se articularia com a de Wiens et al. (1993) de que a ecologia
da paisagem seria uma ecologia espacialmente explícita ou locacional, ou
seja, o estudo da estrutura e dinâmica dos mosaicos espaciais e suas causas
e consequências ecológicas em qualquer nível de uma hierarquia organiza-
cional, ou em qualquer uma de muitas escalas de resolução.
A importância das noções de estrutura e escala dessas definições
também é enfatizada ao trazer-se a definição de Nassauer (1997) de que
a ecologia da paisagem investigaria a estrutura da paisagem e a função
ecológica em uma escala que abrange os diferentes elementos comuns da
60
experiência humana da paisagem como quintais, florestas, campos, riachos
e ruas. Ou ainda na definição de Wu e Hobbs (2007) segundo a qual a eco-
logia da paisagem seria a ciência e a arte de estudar e influenciar a relação
entre o padrão espacial e os processos ecológicos em níveis hierárquicos
de organização biológica e diferentes escalas no espaço e no tempo. Esca-
las também fazem parte da definição de Turner (1989) e Turner et al. (2001),
de forma que a ecologia da paisagem enfatizaria escalas espaciais amplas,
muito maiores do que aquelas tradicionalmente estudadas em ecologia, e,
ao analisar os efeitos ecológicos da configuração de padrões espaciais dos
ecossistemas, ela se debruçaria sobre as causas e consequências da hetero-
geneidade espacial em uma gama de escalas.
A essas definições, Metzger (2001) incorpora outras, algumas que se
sobrepõe àquelas trazidas por Wu (2012), como as de Forman & Godron
(1986), Risser et al. (1984) ou Turner (1989), e outras diferentes das de Wu
(2012), por exemplo: ecologia da paisagem corresponderia à investigação
da estrutura e funcionamento de ecossistemas na escala da paisagem (PO-
JAR et al., 1994); seria uma forma de considerar a heterogeneidade ambien-
tal em termos espacialmente explícitos (WIENS et al., 1993); ou uma ciência
interdisciplinar que lida com as interações entre a sociedade humana e seu
espaço de vida, natural e construído (NAVEH; LIEBERMAN, 1994).
Rose (2002) também nos traz outro conjunto de definições diferente
das anteriores: a paisagem seria uma parte da superfície da terra que pode
ser compreendida de imediato, com um simples olhar (JACKSON, 1984);
a paisagem poderia surgir através de um esforço da imaginação exercido
sobre o que foi capturado pelos sentidos do observador (TUAN, 1979); ou
poderia, ainda, corresponder a uma forma de ver, uma composição e estru-
turação do mundo de modo que ela possa ser apropriada por um especta-
dor individual, distante, a quem uma ilusão de ordem e controle é oferecida
através da composição de espaço (COSGROVE, 1985). Para Lewis (1976), a
paisagem poderia ser a nossa autobiografia inconsciente, refletindo nossos
gostos, nossos valores, nossas aspirações e até mesmo nossos medos, de
forma tangível e visível.
A essas definições, acresce-se ainda que paisagens corresponderiam
aos sistemas ‘Gestalt’ tridimensionais concretos do Ecossistema Humano
Total, que seria a entidade ecológica coevolucionária mais elevada na Terra
(NAVEH, 2000). Para esse último autor, as paisagens constituiriam a matriz
espacial e funcional para todos os organismos,
,incluindo seres humanos e
suas populações, comunidades e ecossistemas, e seriam mais do que ecos-
sistemas repetidos em trechos de quilômetros de largura. As paisagens,
sendo sistemas concretos, tangíveis, de nosso Ecossistema Humano Total,
61
devem ser, portanto, estudadas e manejadas em si, em diferentes escalas e
dimensões funcionais e espaciais (NAVEH, 2000).
Para Bertrand (1978), a paisagem não existe fora do sistema em que
funciona, de maneira que desenvolver um “enquadramento” da paisagem
consiste em encerrá-la em um sistema de referência socioecológico, em que
seu conteúdo socioecológico e seu envelope ecoespacial podem ser deli-
mitados. Por isso, mais do que apresentar uma definição, ele prefere apre-
sentar elementos a serem nela considerados: o reconhecimento da ação (ou
produção), baseada no funcionamento do sistema de produção material e
cultural, o reconhecimento do fator tempo que corresponde a um período
estável do sistema de produção, e o reconhecimento do lugar, delimitando
o espaço material no qual o sistema de produção se desenvolve.
Seguindo a mesma linha de argumentação, Anschuetz et al. (2001) pre-
ferem trazer o que eles considerem as quatro premissas fundacionais do
paradigma de paisagem:
a) Paisagens não seriam sinônimos de ambientes naturais, mas promo-
veriam uma síntese dos sistemas culturais, estruturando e organizando as
interações das pessoas com seus ambientes naturais;
b) Paisagens seriam produtos culturais, resultantes das atividades co-
tidianas, crenças e valores por meio dos quais as comunidades transforma-
riam o meio físico em espaços que lhes seriam significativos;
c) Paisagens corresponderiam a uma espécie de arena ou meio em que
as populações sobreviveriam e se sustentariam, e o domínio de uma paisa-
gem resultaria na emergência de padrões observáveis de traços materiais
e espaços vazios pelos quais as interações entre dimensões culturalmente
organizadas e recursos não culturalmente organizados se manifestariam;
d) Paisagens seriam construções dinâmicas, servindo tanto como uma
construção material que comunicaria informações quanto como um tipo de
texto histórico, registrando processos de mudança comportamental através
do espaço e ao longo do tempo, o que resultaria em uma paisagem em
constante mudança.
Finalmente, cabe apresentar a definição presente na Convenção Eu-
ropeia da Paisagem, do ano de 2000: paisagem designaria uma parte do
território apreendida pelas populações, cujo caráter resultaria da ação e das
62
interações de fatores naturais e/ou humanos e suas interrelações (CONSEIL
DE L’EUROPE, 2008).
Neste momento do texto, apresenta-se um quadro-síntese compilando
esse conjunto de definições (Quadro 1), à semelhança da estratégia adota-
da por Wu (2012), porém ampliando-a para novas definições aqui apresen-
tadas, de forma que seja possível alguma função analítica na sequência.
Uma nuvem de palavras produzida a partir desta listagem de definições
é apresentada na Figura 1, expressando as palavras de maior frequência no
rol textual presente no Quadro 1.
Quadro 1. Lista de definições de ecologia da paisagem
Definição Fonte
A paisagem representaria o caráter total de uma região da terra Alexander von
Humboldt,
segundo Zonneveld
(1995)
A paisagem corresponderia a uma área com uma forma de terreno em
que o processo de modelagem não seria considerado simplesmente
físico, mas associado a distinta formas, tanto físicas quanto culturais,
levando essa a ter uma constituição reconhecível, limites, como tipo
ou uma variante do tipo, mas sempre considerando o caráter genérico
e a relação genérica com outras paisagens que constituem um sistema
geral
Sauer (1925)
A ecologia da paisagem seria o estudo das principais relações
causais complexas entre as comunidades de vida e seu ambiente em
uma determinada seção de uma paisagem, em que as relações se
expressariam regionalmente em um padrão de distribuição definido
(mosaico, padrão) e em uma regionalização natural em várias ordens
de magnitude
Troll (1939); Troll
(1968); Troll (1971)
A ecologia da paisagem seria um aspecto do estudo geográfico que
consideraria a paisagem como uma entidade holística, composta de
diferentes elementos, todos influenciando uns aos outros, indicando,
portanto, que a terra seria estudada como o ‘caráter total de uma
região’ e não em termos dos aspectos separados de seus elementos
componentes
Zonneveld (1972)
A ecologia da paisagem seria uma ciência interdisciplinar que lidaria
com as interações entre a sociedade humana e seu espaço de vida,
natural e construído, com as paisagens abertas e construídas, com base
na teoria geral dos sistemas, biocibernética e ecossistema; as paisagens
corresponderiam, nesse contexto, a entidades naturais e culturais
tangíveis e heterogêneas, intimamente interligadas entre si
Naveh e Lieberman
(1994)
63
Definição Fonte
A paisagem seria uma área com quilômetros de extensão em que um
aglomerado de povoamentos ou ecossistemas em interação se repetiria
de forma semelhante, de tal forma que a ecologia da paisagem se
debruçaria sobre o estudo da estrutura, função e desenvolvimento das
paisagens
Forman (1981);
Forman e Godron
(1986)
A ecologia da paisagem teria foco explicitamente no padrão espacial,
considerando o desenvolvimento e a dinâmica da heterogeneidade
espacial, as interações e trocas espaciais e temporais ao longo de
paisagens heterogêneas, as influências da heterogeneidade espacial nos
processos bióticos e abióticos, e a gestão da heterogeneidade espacial,
representando a intersecção sintética de muitas disciplinas relacionadas
que privilegiariam o padrão espaço-temporal da paisagem
Risser et al. (1984)
A ecologia da paisagem seria o estudo dos efeitos recíprocos do padrão
espacial nos processos ecológicos e as maneiras pelas quais os fluxos
são controlados dentro de matrizes heterogêneas
Pickett e Cadenasso
(1995)
A ecologia da paisagem investigaria a estrutura da paisagem e a função
ecológica em uma escala que abrange os diferentes elementos comuns
da experiência humana da paisagem como quintais, florestas, campos,
riachos e ruas
Nassauer (1997)
A ecologia da paisagem seria uma ecologia espacialmente explícita
ou locacional, visando o estudo da estrutura e dinâmica dos mosaicos
espaciais e suas causas e consequências ecológicas em qualquer nível de
uma hierarquia organizacional, ou em qualquer uma de muitas escalas
de resolução
Wiens et al. (1993)
A ecologia da paisagem enfatizaria escalas espaciais amplas, muito
maiores do que aquelas tradicionalmente estudadas em ecologia e,
ao analisar os efeitos ecológicos da configuração de padrões espaciais
dos ecossistemas, ela se debruçaria sobre as causas e consequências da
heterogeneidade espacial em uma gama de escalas
Turner (1989);
Turner et al. (2001)
A ecologia da paisagem seria a ciência e a arte de estudar e influenciar
a relação entre o padrão espacial e os processos ecológicos em níveis
hierárquicos de organização biológica e diferentes escalas no espaço e
no tempo
Wu e Hobbs (2007)
A ecologia da paisagem corresponderia à investigação da estrutura e
funcionamento de ecossistemas na escala da paisagem
Pojar et al. (1994)
A paisagem seria uma parte da superfície da terra que pode ser
compreendida de imediato, com um simples olhar
Jackson (1984)
A paisagem seria nossa autobiografia inconsciente, refletindo nossos
gostos, nossos valores, nossas aspirações e, até mesmo, nossos medos,
de forma tangível e visível
Lewis (1976)
64
Definição Fonte
A paisagem seria um esforço da imaginação exercido sobre o que foi
capturado pelos sentidos
Tuan (1979)
A paisagem seria uma forma de ver, uma composição e estruturação
do mundo de modo que ela possa ser apropriada por um espectador
individual, distante, a quem uma ilusão de ordem e controle é oferecida
através da composição de espaço
Cosgrove (1985)
As paisagens corresponderiam aos sistemas ‘Gestalt’ tridimensionais
,concretos do Ecossistema Humano Total, constituindo uma
matriz espacial e funcional para todos os organismos, incluindo
seres humanos e suas populações, comunidades e ecossistemas, e
seriam, portanto, mais do que ecossistemas repetidos em trechos
de quilômetros de largura, devendo ser estudadas e manejadas em
diferentes escalas e dimensões funcionais e espaciais
Naveh (2000)
A paisagem não existiria fora do sistema em que funciona, ou seja,
desenvolver um “enquadramento” da paisagem consistiria em encerrá-
la em um sistema de referência socioecológico, em que seu conteúdo
socioecológico e seu envelope ecoespacial seriam delimitados segundo
o reconhecimento da ação (ou produção) baseada no funcionamento
do sistema de produção material e cultural, o reconhecimento do fator
tempo que corresponde a um período estável do sistema de produção,
e o reconhecimento do lugar, delimitando o espaço material no qual o
sistema de produção se desenvolve
Bertrand (1978)
A paisagem como paradigma teria quatro premissas fundacionais: a)
Paisagens não são sinônimos de ambientes naturais, mas promovem
uma síntese dos sistemas culturais, estruturando e organizando as
interações das pessoas com seus ambientes naturais; b) Paisagens são
produtos culturais, resultantes das atividades cotidianas, crenças e
valores por meio dos quais as comunidades transforma o meio físico
em espaços que lhes são significativos; c) Paisagens correspondem a
uma espécie de arena ou meio em que as populações sobrevivem e
se sustentam, e o domínio de uma paisagem resulta na emergência
de padrões observáveis de traços materiais e espaços vazios, com
interações entre dimensões culturalmente organizadas e recursos não
culturalmente organizados; d) Paisagens são construções dinâmicas,
servindo tanto como uma construção material que comunica
informações quanto como um tipo de texto histórico, registrando
processos de mudança comportamental através do espaço e ao longo
do tempo, o que resulta em uma paisagem em constante mudança
Anschuetz et al.
(2001)
Paisagem designa uma parte do território apreendida pelas populações,
cujo caráter resulta da ação e das interações de fatores naturais e/ou
humanos e suas interrelações
Conseil de l’Europe
(2008)
65
Depreende-se pela Figura 1 o destaque para as ideias-chave em Eco-
logia da Paisagem/Paisagem: espacial, interações, padrão/ordem, num
primeiro bloco principal; sistema, heterogeneidade, modelagem, cultural,
num segundo bloco de valorização; e um terceiro bloco constituído pelos
termos forma/configuração, fluxos/processos, reconhecível, estrutura, dinâ-
mica, ecológicos, ecossistemas, escalas, lugar.
Nesse ponto, é importante compreender que a frequência de termos
apenas expressa a maior incidência das palavras mais ligadas à objetivação
da paisagem a partir de suas estruturas, evidenciando a visão hegemônica
dessa abordagem, que valoriza as relações entre padrão, processo e escala
conforme herança do workshop de Allerton Park, evento-marco na história
da Ecologia da Paisagem, realizado de 25 a 27 de abril de 1983, em Illinois,
EUA. No entanto, deve-se notar também que o termo cultural começa a
despontar com maior destaque.
Esse resultado pode ser ainda comentado com base em Paquette et
al. (2005), que também analisaram os múltiplos sentidos da palavra “pai-
sagem” e concluíram pela existência de duas grandes famílias conceituais
que se destacam de forma consistente: a primeira família de definições tra-
ta a paisagem associando-a às formas materiais e objetivas do território,
enquanto outra trata a paisagem como uma manifestação de relações sen-
síveis com a terra, mediada pelos aspectos culturais e valorações sociais em
relação ao território.
Figura 1. Nuvem de
palavras a partir das
definições de Eco-
logia da Paisagem/
Paisagem contida no
Quadro 1
OS LIMITES E
OS DESAFIOS PARA
A PAISAGEM
As preocupa-
ções de ordem teó-
rico-metodológicas
também se fazem
presentes em balanço feito por Li e Wu (2004), que avaliam que a compre-
ensão ecológica decorrente das análises de padrões de paisagem resultou
66
aquém do esperado, por três motivos: falhas conceituais na análise de pa-
drão da paisagem, limitações inerentes aos próprios índices de paisagem e
uso inadequado de métricas de paisagem.
No entanto, desde o despertar da ecologia da paisagem na década de
1980 já reconhecia-se a existência de gargalos, seja pela forte influência da
biogeografia de ilhas ou pela presunção de que as características no nível
do ecossistema seriam suficientes para se estabelecer as características no
nível da paisagem, ou, ainda, pela crença que as sobreposições de planos
de informação (mapas), propiciadas pelas geotecnologias, seriam capazes
de capturar os atributos-chaves da paisagem (WIENS, 2008).
Para esse autor, o workshop de Allerton Park trouxe quatro questões
necessárias para a reflexão de avanços futuros:
a) Como os fluxos de organismos, de material e de energia estão rela-
cionados à heterogeneidade da paisagem?;
b) Quais processos formativos, históricos e presentes são responsáveis
pelo padrão existente em uma paisagem?;
c) Como a heterogeneidade da paisagem afeta a propagação da per-
turbação?; e
d) Como a gestão dos recursos naturais pode ser aprimorada por uma
abordagem de ecologia da paisagem?
Além disso, o workshop buscou fortalecer o debate na área, alertando
que o foco inicial na heterogeneidade per se era excessivamente simplista
e indefinido, requerendo sua expansão rumo à análise quanto ao arranjo
espacial explícito dos elementos em uma paisagem (WIENS, 2008). Li e Wu
(2004) apontam a necessidade de refletir sobre eventuais falhas conceituais
às quais os estudos em ecologia de paisagem podem incorrer: relações
injustificadas entre padrão e processo, insignificância ecológica dos índices
da paisagem e confusão entre a escala de observação e a escala de análise.
Complementarmente, para Metzger (2001), haveria ainda questões ecoló-
gicas básicas envolvendo o conceito de escala, a saber:
i) questionar se existe uma escala espacial e temporal determinada
para cada processo ecológico ou para cada espécie;
ii) refletir se é possível transpor resultados obtidos numa escala pontual
para uma escala global.
67
O período subsequente ao workshop de Allerton Park, como reflexo
também da expansão da pesquisa na área da ecologia da paisagem, trou-
xe novas questões para reflexão: embora a quantificação e a avaliação por
meio de métricas e indicadores tenha fornecido uma riqueza de informa-
ções sobre a estrutura da paisagem, essa profusão também criou uma fon-
te potencialmente grande de confusão, visto que muitas métricas medem
simultaneamente vários aspectos da estrutura, confundindo a composição
e configuração da paisagem (CUSHMAN et al., 2008). A falta de parcimônia
no uso das métricas pode resultar ainda em possibilidade de redundância
e sobreposição. Li e Wu (2004), ao reforçarem a preocupação com o uso
indevido de índices da paisagem, destacam dois exemplos que mereceriam
atenção: o estabelecimento de um padrão de quantificação sem considerar
o processo, e a falha em lidar com as advertências da análise de correlação
com os índices da paisagem.
Nessa mesma linha de preocupação, Metzger (2006) chamou a aten-
ção para a necessidade do cuidado que a biologia da conservação deve ter
quanto ao uso indiscriminado das métricas de paisagem dissociado de uma
análise espécie-específica. Para esse autor, a definição do próprio mosaico
e sua extensão dependeria da espécie envolvida, visto que a percepção de
paisagem como mosaicos interativos poderia ser totalmente diferente em
função das características de uma espécie em relação à outra.
Essa orientação pode ser ilustrada com o exemplo de Rodrigues (2001),
que desenvolveu e aplicou uma metodologia de seleção de áreas para sol-
tura de animais arborícolas resgatados durante o enchimento do reservató-
rio da Usina Hidrelétrica Luis Eduardo Magalhães
,(UHE-LEM), no Tocantins,
tomando como referência o macaco prego ou capuchinho (Cebus apella),
após monitoramento da abundância e estimativa da área vida e distância
percorrida entre fragmentos florestais por radiotelemetria. As análises e
métricas simples foram referidas tomando essa espécie como referência
justamente por terem uma área de vida significativamente ampla dentre os
animais com as mesmas restrições de habitat, podendo servir de base para
o planejamento e definição de áreas de soltura que abranjam os demais
animais (espécies guarda-chuva). A metodologia incluiu quatro parâmetros
para seleção e classificação dos fragmentos florestais quanto ao potencial
para recepção da fauna resgatada (Tamanho do fragmento, observando a
filtragem por tamanho mínimo de 0,6 km², Permeabilidade ou Conectivi-
dade, correspondendo ao tipo de ambiente existente entre o fragmento e
seus vizinhos, Distância do fragmento analisado para seus vizinhos, obser-
vando a distância reportada para travessia da espécie em ambientes aber-
tos como sendo de 100 a 800 metros, e Adensamento, correspondendo ao
68
número de fragmentos vizinhos), gerando um índice de classificação final
dos fragmentos: TOTAL-P = (Tamanho x 0,5) + (Distância x 0,2) + (Permea-
bilidade x 0,2) + (Adensamento x 0,1) (Figura 2).
Figura 2. Mapeamentos dos parâmetros utilizados para seleção e classificação dos fragmentos
florestais (A=tamanho, B=Permeabilidade, C=Distância, D=Adensamento), quanto ao potencial
para recepção da fauna resgatada durante o enchimento do reservatório da Usina Hidrelétrica
Luis Eduardo Magalhães (UHE-LEM), no Tocantins, gerando um índice de classificação final
(E=Total) dos fragmentos.
Fonte: Adaptada de RODRIGUES (2001)
Essas questões derivadas de Allerton Park trazidas por Wiens (2008), e
69
aqui atualizadas e complementadas com base em Metzger (2006) e Cushman
et al. (2008), também se circunscrevem no domínio da abordagem ecológi-
ca, sem erigir questões relativas ao campo da abordagem geográfica (ge-
ográfica-humanista) ou quanto a uma necessária articulação entre as duas
abordagens. Para Paquette et al. (2005), para além dessa polarização entre
duas abordagens, que expressam a dicotomia objetividade x subjetividade,
existiria a emergência de uma terceira posição conceitual particular, segun-
do a qual a paisagem não deve ser vista como apenas referenciada a uma
realidade físico-espacial objetiva, e tampouco limitada a uma qualificação
subjetiva do olhar, mas sim associada à relação dialética existente entre as
duas abordagens.
Simensen et al. (2018) também compartilham desse mesmo raciocínio
ao caracterizarem os estudos contemporâneos em paisagem contemporâ-
nea segundo uma divisão clara dos escopos em três abordagens:
a) análises holísticas;
b) estudos com base em propriedades geoecológicas relacionadas ao
uso da terra, e
c) caracterização biofísica da paisagem por análise estática – sendo a
segunda abordagem aquela que se aproximaria da terceira posição concei-
tual de Paquette et al. (2005).
Bertrand e Tricart (1968) reforçam essa discussão, argumentando que
a paisagem não seria o simples acréscimo de elementos geográficos díspa-
res, mas o produto da combinação dinâmica de elementos físicos, biológi-
cos e antrópicos que interagem dialeticamente uns com os outros. Portan-
to, a paisagem corresponderia a um todo único e indivisível em contínua
evolução, o que exigiria também a dialética como método de pesquisa da
paisagem.
Silva et al. (2020), numa tentativa de promover essa aproximação dialé-
tica entre as abordagens ecológica e geográfica/humanista, desenvolveram
um estudo para demonstrar que o zoneamento da paisagem produzido no
campo por geógrafos vinculados à Geografia Humana seria acurado e po-
deria ser plenamente validado pelos procedimentos matemáticos usados
na ecologia da paisagem, como métricas e índices. Para tal, desenvolveu-
-se um sistema de assinatura gráfica das métricas de paisagem (número
de classes, porcentagem de cobertura vegetal, percentual de fragmentos
na paisagem, número de fragmentos, índice de diversidade, tamanho dos
70
fragmentos, distância entre fragmentos, índice de forma dos fragmentos)
para cada um dos tipos de paisagens (Figura 3). Esse sistema de assinatu-
ra, inspirado nos moldes de assinatura espectral no sensoriamento remo-
to (LAQUES, 2009; NIESTEROWICZ; STEPINSKI, 2016), permitiria visualizar
padrões diferentes para cada tipo de paisagem, que foram estatisticamente
confirmados como tendo diferença significativa entre si. O teste estatístico
serviu para confirmar a hipótese dos autores de que o mapa paisagístico
resultante das observações e pesquisas de campo, com reputação subjeti-
vista e sem acurácia, apresenta uma coerência que comprova a legitimida-
de e viabilidade desse. Os autores assim concluem ser a paisagem capaz
de promover uma mediação integradora da geografia física e da geografia
humana, que pode ser transposta aqui para as abordagens ecológica e ge-
ográfica (geográfica-humanista) da paisagem.
Figura 3. Exemplo de assinatura de paisagem para os tipos 3-Quintais crioulos na Guiana
Francesa e 5-Assentamentos rurais no Brasil
Fonte: Adaptada de Silva et al (2020)
Outro trabalho que se enquadra na busca da terceira posição concei-
tual de Paquette et al. (2005) é o de Antrop e Van Eetvelde (2000), que
investigaram se os mapas de métricas da paisagem, supostamente capazes
de revelar padrões espaciais, corresponderiam às unidades de paisagem
definidas por abordagens holísticas baseadas na percepção humana. Cabe
assinalar, no entanto, que os trabalhos de Silva et al. (2020) e o de Antrop e
Van Eetvelde (2000) diferem entre si: o primeiro buscou a aplicação das mé-
tricas em unidades de paisagem previamente definidas in situ para então
analisar o nível de diferenciação entre os tipos de paisagem e confirmar pela
matematização a correção da abordagem geográfica-humanista, enquanto
que Antrop e Van Eetvelde (2000) utilizaram as suas próprias métricas como
ponto de partida para definir as unidades da paisagem e compararam seus
limites com aqueles derivados da interpretação visual das imagens, assim
71
conjecturando que a matematização seria capaz de chegar na abordagem
geográfica (geográfica-humanista).
Aponta-se que não é possível reificar o poder discriminatório propicia-
do pelas formas espaciais capturadas pelas geotecnologias, porque faz-se
necessário analisar as dinâmicas sócio-históricas que produziram o fenôme-
no. Deve-se considerar também a possibilidade de ilusionismo provocado
pela confiança advinda da fetichização da tecnologia (SAITO, 1995).
É preciso lembrar que não se pode ignorar o fator cultural como parte
integrante do reconhecimento e estabelecimento das formas de uso e tipos
de paisagem, como pode ser visto em Robbins (2003). Esse autor mostrou
a parcialidade da tecnologia de mapeamento, e como o significado cultural
das paisagens depende dos papéis sócio-políticos na produção regional e
gestão dos recursos, apresentado ainda possibilidades de uso crítico da fer-
ramenta a partir de um estudo de caso em uma região de Rajasthan, Índia.
Por outro lado, deve-se reconhecer que as geotecnologias podem ser
apropriadas e possuem um poder de avaliação fundamental, considerando
sua capacidade de operar as métricas, cartografando com precisão e ra-
pidez. Essa apropriação da geotecnologia pode representar um aumento
no poder analítico e de criticidade, como mostrado por Levin et al. (2010)
em um estudo sobre os padrões de assentamento no Negev. Os autores
mostraram que o padrão do gradiente espacial de distribuição das tendas
de beduínos em direção ao norte apresenta uma interrupção abrupta, en-
quanto a mesma distribuição das tendas diminui gradualmente em direção
ao sul, sugerindo uma paisagem historicamente construída sob relações de
poder e coerção, e com representações diferentes devidas a grupos hege-
mônicos.
Tratar da trajetória de busca
,por uma perspectiva mais integradora em
termos conceituais da paisagem inclui, necessariamente, fazer referência
à Convenção Europeia da Paisagem, de 2000, que traz a noção de que a
paisagem resulta da interrelação natureza-sociedade, opondo-se tanto ao
conceito de paisagem como bem, quanto à qualificação entre cultural e
natural. Essa convenção assume a paisagem como locus em que deve-se
exercer o tema da qualidade dos locais onde as populações vivem, seu
bem-estar (entendido nos sentidos físico, fisiológico, psicológico e intelec-
tual) do indivíduo e social, e o desenvolvimento sustentável (CONSEIL DE
L’EUROPE, 2008).
Para Saito e Laques (2021), a paisagem na Convenção Europeia da Pai-
sagem é vista nem como substrato, nem como uma configuração a ser pro-
tegida, sendo assim compreendida como um processo de transformação a
ser apreendido e compreendido.
72
As recomendações contidas no documento Recomendação CM/
Rec(2008)3 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa aos Estados
membros sobre as diretrizes para a implementação da Convenção Europeia
da Paisagem, de 6 de fevereiro de 2008 (Conseil de l’Europe, 2008), tomam
como princípios orientadores, primeiramente, que leve-se em consideração
o território como um todo, abarcando os espaços naturais, rurais, urbanos
e periurbanos, incluindo tanto os espaços terrestres quanto as águas inte-
riores e marítimas. Essa recomendação também pode ser entendida como
uma contraposição ao surgimento de terminologias de tipificarão ou adjeti-
vação, como “waterscapes” em oposição a “landscapes”, na literatura base-
ada na língua inglesa. Outro princípio orientador é de que toda e qualquer
política de paisagem deve basear-se num diagnóstico que a qualifique com
base não apenas nas características físicas, mas também nos seus aspectos
históricos e culturais e, indo mais além, recomenda também considerar a
percepção da paisagem pelas populações tanto em uma evolução histórica
quanto de seu significado presente.
Para essa convenção, a gestão da paisagem a partir de uma perspec-
tiva de desenvolvimento sustentável visa garantir a manutenção regular de
uma paisagem, de modo a orientar e harmonizar as mudanças que são
provocadas por processos sociais, econômicos e ambientais. A estreita re-
lação entre paisagem e desenvolvimento sustentável seria também de mão
dupla, tanto o desenvolvimento sustentável orientando a gestão da paisa-
gem, quanto a paisagem como campo da ciência, contribuindo para o pró-
prio desenvolvimento sustentável e seus objetivos preconizados na Agenda
2030. Para Opdam et al. (2018), o apelo por abordagens interdisciplinares e
de escala múltipla na ecologia da paisagem é consistente, justamente, com
os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Um aspecto importante a ressaltar sobre a visão de paisagem presente
na Convenção Europeia da Paisagem é que essa convenção reconhece que
a paisagem se encontra em constante mudança, e que proteger a paisagem
não pode representar nem a interrupção do tempo nem a restauração das
características naturais ou de formas de influência humana que não existem
mais. Assegurar que a gestão da paisagem esteja vinculada ao seu desen-
volvimento sustentável significa, então, orientar mudanças nos locais de
modo a transmitir suas características específicas, materiais e imateriais, às
gerações futuras.
O que a Convenção Europeia da Paisagem pode estar propiciando
é a retomada da centralidade da paisagem como conceito balizador da
gestão territorial e, igualmente, como uma síntese única das características
naturais, sociais e culturais, tal como em sua origem reclamada por Antrop
73
(2000). Além disso, a retomada da paisagem na perspectiva integradora
pode também contribuir para uma maior aproximação entre a geografia
humana e física, cuja separação Tadaki et al. (2012) analisaram.
Assim, adicionalmente aos desafios anteriormente postos, consideran-
do o disposto na Convenção Europeia da Paisagem, pode-se retomar algu-
mas questões trazidas por Tadaki et al. (2012), direcionadas para este con-
texto específico: como podemos valorizar a cultura e quais seriam os efeitos
disso no estudo e na gestão da paisagem? Quais as reais consequências
de reduzir as “dimensões humanas” a insumos materiais para modelagem
numérica (que ainda representa a valorização da matematização)? Como
reconhecer experiências leigas e não leigas (conhecimentos heurísticos e
empíricos) sobre o meio ambiente e valorizá-las no processo de produção
de conhecimento sobre a paisagem em que existem? Como a história ge-
ográfica pode nos ajudar a entender onde estivemos e para onde ainda
podemos ir com relação à gestão da paisagem? Que tipo de trabalho uma
geografia física cultural pode organizar para a geografia como um todo e
especificamente sobre a gestão da paisagem nos moldes propostos pela
Convenção Europeia da Paisagem?
Essas questões convergem com as preocupações de Minca (2007) em
sua busca por resgatar o compromisso original humboldtiano que, segundo
o autor, poderia ter feito da geografia moderna uma forma genuinamente
crítica de conhecimento: conceber a ideia de paisagem de Humboldt como
um limiar da Modernidade (soglia della modernità), “como um espaço de
potencial e de possibilidade, o enquadramento entre o que existe, o que
existia e o que poderia existir” (p.183). Talvez seja possível caminhar nessa
direção seguindo a sugestão de Opdam et al. (2018), para quem a ecologia
da paisagem deve integrar mecanismos ecológicos e sociais ao pensamen-
to sistêmico, na busca de sintonia com o desenvolvimento sustentável.
À guisa de síntese desta seção, a Figura 4 traz um esquema situando os
principais termos (aqueles mais frequentes) nas conceituações da paisagem
apresentadas no Quadro 1 e organizadas em nuvem de palavras (Figura 1),
relacionando-os aos desafios apresentados.
É interessante notar, com base na Figura 4, o quanto, nas conceitua-
ções, a frequência reiterada de termos pende para a abordagem ecológi-
ca, mas que as questões postas e os desafios identificados para o avanço
dos estudos em paisagem pendem para a abordagem geográfica (geo-
gráfica-humanista). Esse comportamento diferenciado na preponderância
de termos nos conceitos (e por conseguinte o reforço de uma abordagem
em relação à outra) e de prevalência de campos nos desafios futuros talvez
expressem uma reconhecida necessidade de síntese, podendo, nesse caso,
74
reforçar a sugestão da emergência da terceira posição conceitual sugerida
por Paquette et al. (2005).
Figura 4. Esquema-síntese po-
sicionando os desafios para o
avanço dos estudos em paisa-
gem em relação à frequência
de termos nas conceituações de
paisagem, segundo o eixo abor-
dagem ecológica-abordagem
geográfica
75
E é por isso que faz-se muito atual a recomendação de insistir sempre
no aprofundamento do debate sobre o aspecto epistemológico da noção
de paisagem (PALIERNE, 1969).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A revisão sobre a relação entre ecologia da paisagem e geografia per-
manece longe de estar esgotada e, na verdade, ela trata não apenas da
história do conceito de paisagem em si, mas também, e entrelaçada com
ela, da história do desenvolvimento da ciência moderna, do primado do
cartesianismo, da separação entre a geografia física e humana, e da retoma-
da das preocupações com uma visão sistêmica, holística e integradora nas
ciências de modo geral, e na paisagem em particular.
Conhecer a multiplicidade de conceitos e abordagens também exige
uma atenção quanto à origem epistemológica da diferenciação, bem quan-
to as consequências práticas e aplicadas dessas. Os limites identificados em
diversos momentos na literatura remetem, igualmente, aos desafios teóri-
co-metodológicos que permitirão aos estudos de paisagem contribuir para
o bem-estar da humanidade e a manutenção da vida no planeta.
A paisagem renasce no meio acadêmico, e sua emergência na arena
pública da política e da gestão, propiciada pela Convenção
,em um processo de esforço em pensar sobre a dimensão da pai-
sagem, no âmbito da ciência geográfica e num segundo momento apresen-
tar estudos de caso sobre as modificações produzidas pela sociedade sobre
a paisagem. O leitor perceberá que temas contemporâneos e de signifi-
cância estão presentes, o antropoceno, unidades de conservação, geopa-
8
trimônio, patrimônio natural, técnicas de sensoriamento remoto, cartografia
das paisagens, mapas mentais, Turismo, Ecologia da Paisagem, gestão do
território e as paisagens climáticas.
A escolha dos capítulos foi norteada pela necessidade inicial de apre-
sentar um debate teórico sobre a Paisagem, que pode ser concebida, como
conceito ou método, ou como uma narrativa ou forma de leitura do mundo.
O livro é assim composto por dezenove capítulos, com a contribuição de
três trabalhos de pesquisadores internacionais, de Portugal (Universidade
do Minho), Cuba Universidad de Havana) e da Espanha (Universidad Autô-
noma de Madrid), e, de pesquisadores sêniores e pós-graduandos de oito
universidades brasileiras distribuídas por quatro regiões, a saber: duas no
sul (UFSM e UFRGS); quatro no Centro-Oeste (UFGD, UnB, UFMS e UFG);
uma no Nordeste (UFPB) e uma no Sudeste (UFV). Soma-se ainda dois capí-
tulos escritos por pesquisadores da Embrapa-Cerrado e do IBAMA.
De um modo ou de outro, os autores desta coletânea, sob diferentes
perspectivas, apontaram a importância do estudo e do debate acerca da
Paisagem no atual contexto de transformação intensa da superfície terres-
tre, reafirmando o conhecimento com uma arma indispensável no enfrenta-
mento e na superação dos problemas vividos pela sociedade, não apenas
do Brasil, mas, de certa forma do Mundo.
Acreditamos que abrangência e a profundidade dado a questão da
Paisagem em diferentes dimensões torna esta obra uma contribuição para
professores, graduandos e pesquisadores das áreas das ciências humanas,
biológicas, para aqueles que se dedicam em compreender a complexidade
da Paisagem. Esse convite, o convite a leitura, se estende aos profissionais
dos mais variados organismos sociais, que reconhecem que o processo de
organização e gestão do território perpassa pelo imperativo de compreen-
der e desenvolver melhores maneiras de gerir, monitorar, perceber, sentir
e analisar a Paisagem, como parte de um procedimento estratégico para a
construção de um Mundo mais justo.
Aquele que ousar, se predispor a se dedicar a leitura dos capítulos des-
ta obra, buscando não penas se aventurar pelo tema, mas compreender o
mesmo, perceberá que a Paisagem é um mosaico, com formas, cores, gos-
to, odores e dinâmicas geobiofísicas, que passam a ser composições, mas
também de expressão singular e plural do ser no e do mundo. Isso é por
demais Geográfico e de grande interesse para o século XXI.
9
... O pensar, aquilo que virá
Quando o projeto do livro foi pensado a informalidade e a vontade do
fazer eram as tónicas postas. Vê-lo pronto surge o contentamento e a satis-
fação da realização - essencialmente por ser uma obra coletiva.
No cenário seguinte está a responsabilidade atribuída a nós (organiza-
dores) pela continuidade daquilo pensado; no caminhar e no desenrolar do
fazer e do fazimento percebemos que o livro não se esgota, pelo contrário,
deixa em aberto anseios por coisas que ainda estão por vir. Nesse por vir
optamos por ter o livro como Volume 1 - mesmo que possa inicialmente
parecer uma pretensão.
Na audácia e na vontade de coisas, no pensar da organização da cole-
tânea, nos instigou a deixar a possibilidade de outros volumes; como uma
porta aberta, um lugar de acolhimento aos grupos de pesquisa e pesqui-
sadores que se dedicam ao estudo da Paisagem. O contexto institucional
presente no selo Caliandra do Instituto de Ciências Humanas da UnB de fato
nos permite pensar que outras contribuições, outros livros, podem vir nos
próximos ano; há o desejo para que isso aconteça, e, como sabem, o verbo
desejar antecede o verbo fazer.
... Para finalizar
Agradecemos as autoras e autores que acreditaram no projeto, por de-
dicarem-se na escrita e na revisão dos capítulos, por compreenderem os
desafios envolvidos em todas as etapas que antecederam a publicação do
livro.
Aos leitores que chegaram até aqui, agradecemos. Que as palavras e as
propostas presentes no livro venham ao encontro das expectativas individu-
ais e coletivas que os trouxeram a leitura.
Nossos mais eloquentes agradecimentos à Profa. Neuma Brilhante, di-
retora do Instituto de Ciências Humanas da UnB; à equipe editorial do selo
Caliandra e ao Departamento de Geografia da UnB.
10
Os organizadores
Valdir adilson steinke
Charlei apareCido da silVa
edson soares Fialho
Obra concluída entre verões e invernos
Entre outonos e primaveras
Na distância e na intimidade
Na crueldade da pandemia
No afeto da amizade fraterna
Por isso a poesia:
Distância
Querer voltar e não poder
Querer ir ao encontro
E ter que ficar
A quilômetros, milhares deles
Distante
(Poema de Gigio Sartori)
11
SUMÁRIO
PREFÁCIO ____________________________________________________ .15
A PAISAGEM NA GEOGRAFIA FÍSICA OU PAISAGEM E NATUREZA
dirCe Maria antunes suertegaray__________________________________ .18
CONTRIBUTO DA GEOGRAFIA PARA OS ESTUDOS DA
PAISAGEM EM PORTUGAL
antónio Vieira__________________________________________________ .36
ECOLOGIA DA PAISAGEM E GEOGRAFIA
Carlos hiroo saito_____________________________________________ .56
PAISAGENS ANTROPOCÊNICAS: Uma Proposta Taxonômica
adriano seVero Figueiró_________________________________________ .80
DAS PAISAGENS ORIGINÁRIAS ÀS PAISAGENS ANTROPOGÊNICAS:
As Unidade de Conservação da Natureza Como
Testemunho de um Percurso
Valdir adilson steinke
gabriella eMilly pessoa
sandra barbosa_______________________________________________ .107
12
PAISAGEM E PATRIMÔNIO NATURAL: Conexões Históricas e Conceituais
JoMary MauríCia l. serra
Valdir adilson steinke________________________________________ .131
TURISMO DE NATUREZA, ECOTURISMO, NATUREZA E PAISAGEM:
Imbricativos Conceituais
Charlei apareCido da silVa
patríCia Cristina statella Martins______________________________ .158
A PAISAGEM DA CIDADE PELOS MAPAS MENTAIS: Possibilidades e
Percursos na Construção de Uma Leitura Especial Crítica
denis riChter
igor de araúJo pinheiro______________________________________ .185
CARTOGRAFIA DE PAISAGENS: Fundamentos, Tendências e Reflexões
luCas Costa de souza CaValCanti
adalto Moreira braz
Cristina silVa de oliVeira______________________________________ .207
ESTUDOS DE PAISAGEM E SISTEMA DE INFORMAÇÕES GEOGRÁFICAS:
Para Além da Representação Cartográfica
edilson de souza bias
abiMael Cereda Junior
rôMulo José da Costa ribeiro__________________________________ .233
ANÁLISE DA PAISAGEM POR MEIO DE SENSORIAMENTO REMOTO
edson eyJi sano
daniel Moraes de Freitas______________________________________ .262
13
EL PAISAJE Y LA GESTION DEL TERRITORIO
eduardo salinas CháVez_____________________________________ .287
ESTUDOS DE PAISAGEM NA CONTEMPORANEIDADE: Da Paisagem ao
Projeto de Planejamento e Gestão Territorial
roberto VerduM
luCile lopes bier
luCiMar de FátiMa dos santos Vieira
eber pires Marzulo_________________________________________ .315
PAISAGEM FLUVIAL E O GEOPATRIMÔNIO
karen apareCida de oliVeira
VeníCius JuVênCio de Miranda Mendes
Valdir adilson steinke______________________________________ .340
íCones de paisageM: Um Conceito em Construção
bruno de souza liMa_______________________________________ .357
GESTIÓN EDUCATIVA EN UN ANÁLISIS E INTERPRETACIÓN DE UN
PAISAJE KÁRSTICO MEDITERRÁNEO
alFonso garCía de la Vega__________________________________
,Europeia da
Paisagem, só vem a reforçar o seu protagonismo atual. Que esse renasci-
mento seja profícuo e capaz de valorizar seu aspecto integrador.
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1995.
79
AGRADECIMENTOS
Agradece-se ao Projeto INCT/Odisseia-Observatório das dinâmicas socio-
ambientais: sustentabilidade e adaptação às mudanças climáticas, ambientais e
demográficas (chamado INCT – MCTI/CNPq/CAPES/FAPs n.16/2014), e à FAP-
DF, ao CNPq e ao CAPES, pelo apoio financeiro.
80
PAISAGENS
ANTROPOCÊNICAS:
UMA PROPOSTA TAXONÔMICA
Adriano Severo Figueiró
INTRODUÇÃO: O QUE SABEMOS DO ANTROPOCENO?
Desde a instalação plena da Modernidade, os axiomas da cultura ca-
pitalista (a racionalidade extrema, o dogma científico, o antropocentrismo,
a busca da expansão ilimitada, o culto à objetividade e o reforço da desi-
gualdade como valor humano) são responsáveis por uma sistemática e ace-
lerada mudança nas estruturas internas em que opera a relação da socieda-
de com a natureza. A natureza deixa de ser um espaço de reprodução da
vida (incluindo a humana), para se transformar em um simples e gigantesco
depósito de recursos, supostamente à disposição daqueles que puderem
pagar, na quantia e na intensidade de exploração que for necessária à re-
produção ampliada do capital.
Esse processo se tornou ainda mais evidente a partir da retomada indus-
trial no pós-guerra, quando evidenciou-se que as áreas florestais do mundo
foram reduzidas praticamente à metade, e que um quarto dos recursos pes-
queiros do planeta já desapareceram (BROSWIMMER, 2005). No clássico
livro do ecólogo Norman Myers The Sinking Ark, a estimativa, à época, era
de que a retração florestal se processava a um ritmo de 2% de perdas ao
ano (MYERS, 1979), e de que até o final do século XXI, metade de todas as
espécies vivas do planeta já poderiam ter desaparecido (LEAKEY;LEWIN,
1997). Várias luzes de advertência, atualmente, nos relembram desse alerta
que insistimos em não perceber. Ainda na década de 60 do século XX a
humanidade utilizava apenas metade da capacidade biológica do planeta,
enquanto que em 2003 a taxa de utilização chegou a 1,2 vezes a capacida-
de de regeneração, o que implica na inevitável conclusão de que passamos
a “queimar o estoque”, ou seja, estamos consumindo mais recursos ecoló-
81
gicos do que o planeta é capaz de repor (WACKERNAGEL;BEYERS, 2010).
Toda essa mudança da condição biofísica dos ecossistemas terrestres e ma-
rinhos faz com que a grande “marca ecológica” da sociedade contemporâ-
nea seja o seu poder de superar a “biocapacidade” do planeta.
Tal é a intensidade da mudança provocada nas paisagens terrestres a
partir do pós-guerra, que muitos cientistas são unânimes em afirmar que
não estamos apenas diante de um período peculiar da história econômica
da civilização moderna, mas de um novo período geológico, o Antropoce-
no (LEWIS ;MASLIN, 2015), em que a força da ação humana prevalece sobre
todas as demais forças geobiofísicas que moldam o sistema Terra.
Definido originalmente pelo químico atmosférico holandês Paul Crut-
zen (CRUTZEN; STOERMER, 2000), o termo passou a designar um período
de tempo a partir do qual a ação humana pode ser responsabilizada por
uma mudança global nos ciclos biogeoquímicos do planeta, definida a par-
tir de marcadores universais como microplásticos, metais pesados e núcleos
radioativos deixados por testes de armas termonucleares (MONASTERSKY,
2015).
Embora a maior parte dos especialistas do Grupo de Trabalho sobre
o Antropoceno da União Internacional de Estratigrafia (ICS) aponte o início
da era atômica3 como um marco de referência para esse novo período ge-
ológico (SANDERS, 2015), não há unanimidade no assunto. Alguns pesqui-
sadores ligam o Antropoceno à criação da máquina a vapor (1780), como
um marco simbólico da revolução industrial que desencadeou as grandes
transformações que hoje percebemos (CRUTZEN e STOERMER, 2000). Já
outros retroagem ainda mais, demarcando como um possível início o século
XVII (pelo início do intercâmbio colombiano entre o Novo e o Velho Mundo)
ou a Revolução Neolítica (por volta de 12.000 anos atrás), com o advento da
agricultura (LEWIS e MASLIN, 2015).
Independente do marco histórico que defina o início da cronologia do
Antropoceno, o fato é que nesse novo período de tempo, o protagonismo
das transformações vem da humanidade, convertida no mais importante
agente de mudança ambiental em escala planetária. Daí a conclusão de
Mark Lynas: “A natureza já não governa a Terra. O fazemos nós. Nos corres-
ponde dizer o que é que sucederá com ela” (LYNAS, 2011, p.08).
O grande motor dessa imensa transformação por certo se associa ao
aumento acelerado de consumo de recursos naturais, já que mais de um
terço da superfície terrestre do mundo e quase 75% dos recursos de água
doce são, atualmente, dedicados à produção agrícola ou pecuária. Mais do
3 Iniciada em 16 de julho de 1945, com o primeiro teste nuclear da história, conduzido pelos Estados Unidos
no deserto do Novo México.
82
que necessidade alimentar, essa é a base de uma cadeia produtiva de gera-
ção de um sem número de mercadorias que alimentam a extração mineral
e a produção de energia em larga escala.
Essa tendência tem feito com que, desde a década de 30 do século
passado, estejamos colecionando a impressionante média de construção
de 1,2 represas por dia (FIGUEIRÓ, 2017), com um total de mais de 58.000
grandes represas em funcionamento no mundo (MARQUES, 2015). Essas
enormes construções drenam metade das zonas úmidas do planeta e são
responsáveis pela retenção de 15% do fluxo hidrológico dos rios em to-
dos os continentes, cuja água é armazenada em uma superfície de mais
de 400.000 km2, representando cerca de 0,3% de toda área do planeta. É
a verdadeira
,face de uma “esquizofrenia civilizatória” desencadeada pela
alucinação do desenvolvimento, a partir da exploração do trabalho e da
natureza.
A China, por exemplo, pretende quintuplicar a geração de energia em
quinze anos, e a construção de mais quatro centrais nucleares faz parte des-
se projeto de expansão. Nesse mesmo país, as áreas desérticas crescem a
uma taxa superior a 100 mil hectares por ano, o que se soma à perda anual
de 1 milhão de hectares de solo agricultável por conta do avanço da urba-
nização (KEMPF, 2011). Trezentos milhões de chineses bebem água poluí-
da, já que os lençóis subterrâneos estão poluídos em 90% das cidades da
China, e mais de 70% dos rios e lagos compartilham da mesma sorte. Não
é de se estranhar, portanto, que a maior pandemia da história civilizatória
moderna tenha surgido justamente no país que representa um dos princi-
pais epicentros das transformações antropocênicas modernas.
A Índia, um país marcado por contradições sociais e dificuldades nos
quesitos básicos de saúde, educação e saneamento básico, projetava, des-
de a década passada, multiplicar por sete a sua geração de energia até
2022, com o planejamento de sete novas plantas nucleares contribuindo
para esse objetivo (SILVA, 2008). Assim, os problemas sociais da Índia e seu
projeto de expansão energética são, na verdade, diferentes facetas de uma
única crise, a crise da percepção sobre os reais problemas e suas alternati-
vas para o futuro.
Dezenas de bilhões de toneladas de minérios e sedimentos são mo-
bilizados por ano em todo o mundo, alterando a fisiografia terrestre e a
composição química de corpos de água e da atmosfera. Essas alterações
geoquímicas e de uso do solo, por sua vez, recondicionam a distribuição es-
pacial e a estrutura trófica dos ecossistemas. A resultante destas dinâmicas
em termos da conservação da natureza biótica, leva alguns autores a pro-
por a substituição do termo Biomas por “Antromas” (ELLIS; RAMANKUTTY,
83
2008), tal o nível de interferência humana nos ciclos naturais de susten-
tação das paisagens terrestres. Ao reconhecerem que mais de 75% das
terras emersas do planeta mostraram evidências de alterações decorren-
tes de formas humanas de uso da terra, os autores alegam que não faz
sentido continuar a utilizar classificações ecológicas que desconsideram ou
simplificam a influência humana sobre as paisagens terrestres. Assim, par-
tindo do princípio de que as paisagens ditas “naturais” representam uma
absoluta exceção diante das paisagens antropo-naturais, Erle Ellis e Navin
Ramankutti propuseram o conceito de “biomas antropogênicos” ou “an-
tromas” (ELLIS et al, 2010; ELLIS, 2014), apresentando uma classificação de
dezoito categorias baseadas em padrões globais de interação humana dire-
ta e sustentada com ecossistemas (figura 1). Outros autores, antes deles, já
haviam proposto outras denominações, como “Antropostroma”, proposta
pelo geólogo italiano Pietro Passerini. Segundo o autor, “a palavra grega
‘stroma’ é utilizada no sentido literal de ‘tapete’, devido à associação dos
artefatos humanos e construções desenvolvidos como uma camada, um ta-
pete, sobre a superfície terrestre” (PASSERINI apud ROHDE, 2005, p.136).
Figura 1 - Proposta de
classificação dos biomas
antropogênicos feita pe-
los geógrafos Erle Ellis e
Navin Ramankutti, em
que se demonstra a re-
dução progressiva das
paisagens primárias
entre o século XVIII e
o início do século XXI.
Segundo os autores,
os processos ecológi-
cos neste novo século,
na grande maioria dos
biomas terrestres serão,
predominantemente,
controlados pelas ações
humanas diretas.
Fonte: Adaptado de
ELLIS et al. (2010)from
1700 to 2000. Location:
Global. Methods: An-
thropogenic biomes
(anthromes
No entanto, ainda que o Antropoceno seja um conceito cada vez mais
explorado no mundo acadêmico, não apenas no campo das Ciências da
84
Terra, mas em uma verdadeira abordagem multidisciplinar (THOMAS;
WILLIAMS; ZALASIEWICZ, 2020 TSING et al., 2017), boa parte daquilo que
se pensa e se diz sobre esse novo período geológico ainda parte de uma
premissa equivocada, de que o Antropoceno representa apenas e tão so-
mente uma dilatação hiperabissal das tendências entrópicas da moderni-
dade, na direção de um aparentemente inevitável colapso ecológico e, na
sequência, humano.
Para o bem ou para o mal, vivemos hoje em um período sem retorno;
os sistemas humanos de regulação da natureza se transformaram em novos
sistemas primários da Terra, não apenas desregulando dramaticamente os
processos naturais preexistentes, mas também, e mais importante do que
isso, alterando processos, introduzindo materiais e construindo estruturas
inteiramente novas para o sistema terrestre. Excetuados alguns casos pon-
tuais, nossas urbes não retroagirão, a agricultura terrestre dificilmente ocu-
pará menores áreas em face de uma população crescente e nossos oceanos
e florestas não serão menos ocupados no futuro, independente do que
dissermos ou fizermos. Cabe-nos, portanto, agir rápido e com inteligência,
ao invés de apenas lamentarmos o que se perdeu, como um prelúdio ao
colapso absoluto.
Como indivíduos biológicos, ou mesmo em conjuntos de indivíduos
(populações), nós, humanos, somos apenas mais uma das recentes espécies
que habitam o planeta. No entanto, como civilização capaz de construir
interações simbólicas, nossos sistemas representam os efeitos integrados e
sinérgicos de humanos interagindo uns com os outros, em escalas capazes
de forçar mudanças na atmosfera, litosfera, biosfera e, por conseguinte, em
todas as paisagens terrestres. Assim como uma colmeia é muito mais do que
a soma das abelhas que a compõe, os sistemas humanos são mais do que
a soma dos indivíduos humanos transformando a natureza. Nós não apenas
somos responsáveis pelo aumento na magnitude dos processos geobiofísi-
cos anteriores ao próprio homem, incluindo a queima de florestas e outras
vegetações, extinção de espécies, erosão do solo, represamento hidrológi-
co e fixação de nitrogênio, como também somos responsáveis pela criação
de novos processos geobioculturais, como a queima de combustíveis fós-
seis, a construção de estruturas materiais permanentes, a evolução dirigida
de espécies incapazes de se reproduzir sem humanos, o cultivo planejado,
a irrigação e o subsídio artificial de nutrientes aos solos, dentre outros.
Como resultado desse ponto de não retorno, o paradigma conserva-
cionista clássico, de sistemas naturais em equilíbrio perturbados pelas ações
humanas, é insuficiente para oferecer respostas concretas aos dilemas atu-
ais, já que a tentativa de conservação dos sistemas não perturbados, em
85
um mundo cada vez mais ocupado, faz com que a crítica se esgote em si
mesma. Nesse sentido, os sistemas humanos se tornaram um componente
tão integral e definidor dos processos deste planeta quanto os sistemas
biológicos, atmosféricos, hidrológicos e geológicos (ELLIS ;RAFF, 2009).
Assim como o surgimento dos organismos fotossintéticos no Paleozói-
co desencadeou uma mudança qualitativa estrutural no funcionamento da
biosfera, em direção a um aumento de complexidade, a intensificação dos
sistemas humanos no Antropoceno conduz a Terra por um caminho novo e
sem precedentes, que pode, no entanto, ser ainda mais complexo do que
aquele com que estávamos acostumados.
Não há dúvida de que esta não é apenas uma questão terminológica
das datações do tempo, mas de uma mudança profunda na forma como
interpretamos a relação sociedade-natureza e como planejamos o futuro
da humanidade a partir dessa interpretação. Isso não significa, como bem
nos lembra Manuel Maldonado, avançar para um novo paradigma baseado
na completa transformação antropogênica da natureza, mas sim rever nos-
sas premissas epistemológicas de conservação baseadas exclusivamente
na fantasia de uma “wildness”, em que o ser humano pareça sempre ser
o elemento de desequilíbrio (MALDONADO, 2018). A resistência psíquica
da sociedade
,humana de acabar com o mito da existência de uma “nature-
za intocada” (DIEGUES, 1996) parece proporcional à sua incapacidade de
fazer frente ao descontrole produzido pelo “desenvolvimento” capitalista
sobre as estruturas e processos originais das paisagens. Nas palavras de
Maderuelo:
A consciência da deterioração irreversível conduziu à criação dos
mitos do primitivo e do autêntico, que o mundo da publicidade
tem resumido no tópico do “verde” e tem banalizado através da
oferta turística a lugares exóticos e paraísos falsamente perdidos
(2010, p.7)
Tal como nos explica Mircea Eliade, essas paisagens sem seres huma-
nos,
(...) invocam a nostalgia de um passado mitificado, transformando-
-o em arquétipo, que esse “passado” contém, além da saudade
de um tempo que acabou. Elas expressam tudo o que poderia ter
sido mas não foi, a tristeza de toda a existência que só existe quan-
do cessa de ser outra coisa, o pesar de não viver na paisagem e no
tempo evocados (ELIADE, 1991, p.9)
Tanto se interpretarmos a persistência do mito como um instrumento
de resistência ao metabolismo predatório da sociedade moderna (diante
86
da impotência da ação, a alienação na fantasia), quanto se pensarmos no
mito do “paraíso perdido” como uma estratégia de reprodução do próprio
capital na sua marcha destruidora (figura 2), o fato é que a manutenção de
uma narrativa fantasiosa acerca de paisagens idílicas e intocadas nos torna
incapazes de pensar a ação humana como um potencial de autorregulação
para naturezas transformadas.
Figura 2 - Imagem do mirante de
Trolltunga, na Noruega, às margens
do lago Ringedalsvatnet. A divulga-
ção dessa paisagem “intocada” pelo
Instagram, onde poucos felizardos
parecem ter a oportunidade de con-
templar em silêncio a natureza em
seu estado original (foto de cima),
fez com que o número de visitan-
tes aumentasse de 500 por ano em
2009, para 40.000 em 2014. O que
as imagens dificilmente mostram é a
longa fila que se forma no rochedo
desde muito cedo (foto de baixo), à
espera do “click” do falso “minuto de
solidão junto à natureza”. Esse mito
do turismo em paisagens isoladas
alimenta um rico mercado turístico
ao redor do mundo, permitindo que
consumidores de imagens invistam
vultosas quantias para “conhecer an-
tes que acabe”.
Fonte: Miller (2017)
Com isso perde-
mos a oportunidade
de aprender a coexistir
de forma sustentável
com o restante da na-
tureza, dentro daquilo
que emerge como um
novo estado planetá-
rio. Nesse sentido, Erle
Ellis mira ainda mais
longe, ao defender a
necessidade de integrar as ciências naturais e as ciências sociais na criação
de uma “antroecologia” (ELLIS, 2015), capaz de dar conta, ao mesmo tem-
po, do desenvolvimento antropológico humano e do curso das relações
87
sócio-naturais. Para o autor, os seres humanos diferem das demais espécies
em três aspectos principais: somos engenheiros de ecossistemas, podemos
manipular um grande número de ferramentas para tal fim e somos criaturas
sociais capazes de gerar uma ação coletiva e uma aprendizagem social.
É nesse o contexto em que surgem as paisagens antropocênicas, so-
bre as quais cabe refletir. Ainda que esse seja um conceito em construção,
guarda uma potência explicativa inigualável para fazermos frente à crise
civilizatória em que nos encontramos neste princípio de século.
Nosso planeta já não funciona mais como funcionou nos onze milênios
anteriores, e é preciso instaurar uma nova forma de pensamento se quiser-
mos interpretar o Antropoceno como algo mais do que a marca do colapso
humano. Já esgotamos todas as possibilidades de denúncia do projeto ca-
pitalista de modernidade que nos conduziu a essa profunda crise ambien-
tal, econômica, social e ética; e todas essas denúncias apenas agravam a
sensação de impotência e amplificam as estratégias de autoengano, como
bem demonstra Marques (2015)4 ao discutir os mecanismos psicológicos
que dificultam a tomada de consciência acerca da gravidade da crise am-
biental contemporânea.
É chegado, portanto, o momento de enunciar um novo mundo de pos-
sibilidades, em que a integridade da relação sociedade-natureza possa ser
reconstruída, a partir de novos princípios, holísticos e autorregulados. Ain-
da nos anos 1980, George e Claude Bertrand já chamavam a atenção para
o fato de que a “antropodependência direta ou indireta dos geossistemas
é um fato quase geral. (...) É preciso ultrapassar o esquema da natureza-
-clímax e da intervenção humana desestabilizadora” (BERTRAND; BER-
TRAND, 1986:305). Ocorre, agora, a abertura de um novo ciclo histórico,
não mais de) uma natureza intocada, mas de uma natureza transformada e
regulada pelos sistemas humanos em busca de um equilíbrio híbrido.
COMPREENDENDO AS PAISAGENS ANTROPOCÊNICAS A
PARTIR DE UM PARADIGMA PÓS-NATURALISTA.
A paisagem não é a estrutura fisionômica sobre a qual nossos olhos
pousam, essa é apenas a parte final dela, o produto das relações ecológicas
e sociais que se processam ao longo de diferentes escalas de tempo. A pai-
4 Luis Marques destaca os mecanismos de aversão à perda, habituação e dissociação entre causas estruturais e
efeitos pontuais como os principais responsáveis por dificultar a tomada de consciência e a organização de uma ação
concreta capaz de reverter o quadro de entropia instalado no Antropoceno.
88
sagem é muito mais do que a “fotografia”, ela é o processo de apropriação
da natureza pela sociedade, ou, como nos lembram Bertrand e Bertrand
(2002), ela é “uma interpretação social da natureza” (p. 224). Esther Prada
alude à paisagem o papel de uma síntese do território “baseada na vida e
no trabalho acumulado sobre um espaço” (apud BLANCO, 2010, p. 12).
Em última instância, a paisagem representa o tecido que reflete a espessura
histórica de uma civilização (DOLFUSS, 1970), e a sua existência depende,
fundamentalmente, do olhar de quem a interpreta.
Ao longo do tempo, a interação da sociedade com os demais seres
vivos e com o conjunto dos elementos e dinâmicas abióticas no proces-
so de construção e transformação da paisagem acarreta um acúmulo de
memórias particulares dessa interação, que se expressam não apenas na
estética da transformação da natureza original, mas também na variedade
de genes, línguas e saberes que atravessam a estrutura de cada paisagem e
produzem a sua singularidade (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015). Nes-
sa perspectiva, podemos afirmar que a paisagem não passa de um artifício
perceptivo, que só existe na medida em que exista o ser capaz de mirar e
tomar consciência de si como presença e como agente territorial de organi-
zação do espaço. Nas palavras de Pozo:
(...) só existe paisagem se houver vistas, de diferentes perspecti-
vas, sobre essa paisagem. O planeta Terra, sem uma espécie viva
com capacidade de perceber, de exercitar o sentir, compreender,
elaborar paisagens simbolicamente, seria, mesmo com a mesma
configuração física atual, um planeta sem paisagem; porque, como
todos lemos e repetimos muitas vezes, a paisagem é acima de
tudo o olhar que a hospeda. (2011, p.20)
A partir disso, podemos compreender a paisagem como uma categoria
analítica ou um modelo mental de integração dos elementos do espaço,
formado por um
(...) sistema singular, complexo, onde interagem os elementos hu-
manos, físicos, químicos e biológicos, e onde os elementos sócio-
-econômicos não constituem um sistema antagônico e oponente,
mas sim estão incluídos no funcionamento do sistema. (MONTEI-
RO, 2000, p.22).
Esse modelo sistêmico foi interpretado de diferentes formas (ROUGE-
RIE; BEROUTCHACHVILI, 1991) por diferentes autores ao longo de uma
história da Geografia das Paisagens (MATEO RODRÍGUEZ, 2011), porém,
em quase todas essas representações, a presença humana sempre foi con-
89
siderada como um elemento central de regulação da natureza (figura 3), a
ponto de Naveh (1982) propor que no estudo da paisagem a espécie hu-
mana seja considerada como um componente inter-relacionado e coevolu-
,tivo do ecossistema, cujos processos se derivam da “noosfera” – o campo
da mente e da consciência humana. Exatamente por isso somos capazes
de compreender o motivo da ideia de paisagem, na Geografia, parecer
indissociável da ideia de território, entendido como “o recipiente físico e o
suporte do corpo político organizado sob uma estrutura de governo. Des-
creve a arena espacial do sistema político (...) que é dotada de certa auto-
nomia” (GOTTMANN, 2012, p.523).
Ainda que os conceitos de paisagem e de território não possam ser,
obviamente, compreendidos como sinônimos, e mesmo que a transição de
um conceito a outro não seja algo automático, nos parece evidente que,
cada vez mais, a paisagem transcende seu aspecto cênico e se torna um
instrumento chave na dispu-
ta de poder no território, o
que nos autoriza a refletir so-
bre um conceito híbrido de
paisagem-território (WALLE-
NIUS, 2017) ou um “sistema
paisagístico territorializado”
(BERTRAND, 2008).
Figura 3 - Modelo geral de inter-
pretação das interações que se es-
tabelecem entre o sistema humano
e o sistema natural no processo de
estruturação da paisagem.
Fonte: Adaptado de Zonneveld
(apud MATEO RODRIGUEZ,
2011)
Essa paisagem-territó-
rio representa tanto o espa-
ço privilegiado de expressão
do sistema produtivo hege-
mônico, quanto o espaço de
resistência e reafirmação da
cultura local. O primeiro, se
enraíza no espaço local para
acelerar as suas formas de
90
acumulação, buscando se apropriar dos recursos da paisagem e controlar
as relações sociais que ali se realizam; já o segundo, resiste e se reafirma
pela perpetuação da memória, pela conservação dos valores e pelas ex-
periências locais transgeracionais, em constante processo de adaptação às
dinâmicas tecnológicas e socioeconômicas de cada período.
Por isso mesmo, Georges e Claude Bertrand nos alertam sobre a res-
significação da paisagem: “farta de contradições e de sua irredutível glo-
balidade, a paisagem tornou-se um desafio político: sua análise científica
se coloca tanto em termos de saber quanto de poder” (BERTRAND; BER-
TRAND, 2002, p.157)
Nos atrevemos a afirmar que a síntese dialética produzida pela inte-
ração entre os elementos da natureza e da cultura definem a paisagem
como uma expressão material (viva e em movimento) do próprio espaço
geográfico, definido por Santos (2008) como “(...) um conjunto indissoci-
ável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas
de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no
qual a história se dá” (p. 63). Ainda que o conceito de paisagem de Milton
Santos jamais tenha alcançado tal grau de complexidade5 (e tampouco se
propôs a isso), entendemos que essa aproximação entre os conceitos é ne-
cessária e urgente, a fim de pavimentar o diálogo entre todos os campos de
conhecimento que se movem no entorno da paisagem.
A proporção e a intensidade com que objetos e ações (elementos e
processos) participam da organização estrutural e funcional da paisagem
definem o seu grau de equilíbrio, dependência e complexidade, a partir
dos quais as paisagens podem ser classificadas em naturais, antropo-natu-
rais ou culturais.
As paisagens naturais são definidas por Mateo Rodriguez como:
5 Não nos cabe aqui discutir a concepção miltoniana de espaço e paisagem, já que esse tema extrapola o objeto
e o espaço deste capítulo. Ainda assim, entendemos que é necessário chamar a atenção para essa frágil dissociação
presente na obra do autor. Para Milton Santos, enquanto o espaço é a “totalidade verdadeira” (SANTOS, 2008),
envolvendo, ao mesmo tempo, um sistema articulado entre o real-abstrato (as ações) e o real-concreto (os objetos),
“a paisagem é sempre fragmentária, uma ‘totalidade morta’, a paisagem é o agido, não a ação, a paisagem é uma
categoria técnica” (apud SERPA, 2010, p.132). Separar o objeto da intencionalidade que o produziu e/ou o transfor-
ma, bem como dos processos temporais segundo os quais atua essa intencionalidade, é como aceitar a existência de
uma falsa dicotomia entre a forma e a função. As forças que atuam sobre a paisagem jamais podem ser dissociadas da
sua morfologia, ainda que não sejam evidentes e se situem no criptosistema dessa paisagem (ROMERO; JIMÉNEZ,
2002). Assim, longe de ser “o agido”, a paisagem é a interação dialética dos objetos no tempo, ligando o que foi ao vir
a ser, cuja estrutura visível capaz de ser fotografada é tão somente o congelamento de uma fase, que contém em si a
sua origem e a sua destruição.
91
Uma área da superfície terrestre de qualquer dimensão, em cujos
limites os diferentes componentes naturais (a estrutura geológica,
incluindo a litologia, o relevo, as massas de ar, o clima, as águas,
os solos, a vegetação e o mundo animal), tanto em estado natural
como modificados e transformados pela ação humana, se encon-
tram em estreita interação, formando um sistema integrado (2011,
p.12)
Percebe-se, pela definição acima, que as paisagens naturais não impli-
cam ausência do trabalho humano, já que a ideia de “primeira natureza”,
como uma referência à “natureza que estava aqui primeiro e que continua a
existir” (SOHN-RETHEL, 1974, p.185), é tão e somente uma abstração6, um
tour de force da clássica tradição geográfica, como bem nos lembra Sauer
(2004), mas cujo estudo se torna fundamental como “um artifício descritivo
empregado onde é necessário para tornar claro o relacionamento das for-
mas físicas que são importantes para a ocupação humana” (op.cit. p.43). As
paisagens naturais, portanto, correspondem àqueles sistemas paisagísticos
cuja regulação se dá essencialmente pelos fluxos biogeoquímicos desen-
cadeados pelos processos naturais, e onde a interferência humana, ainda
que presente, não chega a ser significativa para alterar o seu funcionamento
natural, organizado a partir dos grandes parâmetros macroestruturais do
holoceno. São, assim, consideradas como paisagens holocênicas7 (figura
4), em que o funcionamento geossistêmico8 (MATEO RODRIGUEZ; SILVA,
2019) é o que as caracteriza.
Já as paisagens antropo-naturais são aquelas compostas por elemen-
tos naturais e antropo-tecnogênicos condicionados socialmente, os quais
modificam ou transformam as propriedades naturais originais das paisagens
6 Lembremos, pelo que foi abordado no início deste texto, que sem o olhar humano que interpreta e classifica,
não há paisagem, e sim, apenas natureza. Nessa perspectiva, não podemos falar em paisagens anteriores ao homem,
senão por um artifício abstrato de comparação com as paisagens ocupadas pelos seres humanos.
7 O uso do tempo geológico para a terminologia da classe de paisagem não tem relação com os processos
formadores ou o tempo decorrido desde sua formação, mas sim com a identificação dos mecanismos predominan-
tes no processo de regulação da sua dinâmica atual. Considerando o equilíbrio biostático do Holoceno (ERHART,
1967) mantido a partir das condições interglaciais úmidas, as paisagens holocênicas se caracterizam por um potencial
ecológico estável, com fraca atividade geomorfogenética em que o equilíbrio da dinâmica natural é essencialmente
controlado pelos processos geobioquímicos.
8 O conceito de geossistema representa uma polissemia a parte dentro da ciência geográfica, especialmente
pelo conflito entre as contribuições de Bertrand (1968) e de Sotchava (1977) no que tange à inclusão dos seres huma-
nos ou não nesse conceito. Uma boa discussão acerca dessa questão pode ser encontrada em Oliveira e Neto (2020).
No presente texto, trabalhamos a partir da contribuição russa, na qual o geossistema representa “o espaço terrestre de
todas as dimensões, onde todos os componentes naturais individuais encontram-se em uma relação sistêmica uns com
os outros e, como integridade, interatuam com a esfera cósmica e com a sociedade humana” (apud MATEO RODRI-
GUEZ; SILVA, 2019, p.23). Nesse sentido, entendemos o geossistema como o modelo conceitual do sistema físico da
paisagem, compreensão
,que também aparece nos trabalhos mais recentes de Bertrand (BERTRAND; BERTRAND,
2002; 2014).
92
e as mantém em novo patamar metabólico. Diferentemente das paisagens
naturais, nessa categoria o funcionamento do sistema humano já se dá em
uma intensidade tal que o estado de equilíbrio (ou de desequilíbrio) da pai-
sagem passa a ser regulado pelo metabolismo sócio-natural ali presente.
Essa é a condição que define a marca essencial das paisagens antropocêni-
cas, ou seja, são paisagens hibridizadas pela cultura humana, cujo ponto de
não retorno às condições originais as coloca na dependência, para o bem
ou para o mal, da regulação humana, por meio de um complexo territorial
produtivo, que dá origem ao que Mateo Rodriguez (2011) define como um
“sistema antropogeoecológico”.
Figura 4 -
Esquema da taxono-
mia genético-fun-
cional das paisagens
atuais, indicando sua
funcionalidade, estado
de equilíbrio e grau de
complexidade.
Fonte: Organização do
autor
Exatamente por isso, Maldonado (2018) nos alerta para o fato de que o
Antropoceno se constitui uma hipótese científica com forte carga moral, já
que o sistema humano transita de essencialmente extrativista (no holoceno)
à regulador (no Antropoceno). Já não temos mais o benefício da inocência
de pensarmos que as propriedades homeostáticas da natureza carregam
um eterno “dom da regeneração”. Descobrimos, e não sem traumas, que a
capacidade de regeneração é função do tempo, e que a perspectiva de um
metabolismo extrativista acelerado e ilimitado é facilmente capaz de rom-
per com a capacidade autorregulatória dos sistemas mais frágeis, conde-
nando as paisagens a estados permanentes de pobreza estruturo-funcional.
Por isso mesmo, há um gradiente bastante diverso das paisagens antro-
po-naturais, dependendo da intensidade das forças produtivas que trans-
formam e regulam os geossistemas ali presentes. Assim, mais do que um
apego às estruturas visíveis que se expressam no fenossistema, a taxonomia
93
dessas paisagens considera seus aspectos genético-funcionais, tendo como
referência a perda, manutenção ou incremento dos serviços paisagísticos9
após e durante a intervenção humana no geossistema.
Na maior parte dos casos, a intervenção humana procede de forma
a desestabilizar o equilíbrio ecológico anterior, ainda que essa não seja ne-
cessariamente a única possibilidade, já que muitas passagens de uma con-
dição estrutural a outra10 podem ocorrer com incremento de funcionalidade
(figura 5), ou seja, a ação humana ocorre para introduzir matéria e energia
capazes de ampliar a diversidade e agregar estabilidade ao sistema, sem
comprometer os serviços originalmente prestados por aquela paisagem.
Figura 5 - A introdução de oli-
vais no Pampa gaúcho, uma
paisagem originalmente cam-
pestre, de pastoreio extensi-
vo, representa uma passagem
estrutural marcante para esta
paisagem, mas a entrada de
energia, nesse caso, ao invés
de desestabilizar o equilíbrio
anterior, amplia e diversifica
os serviços paisagísticos do
Pampa, definindo aí o apare-
cimento de uma paisagem an-
tropo-natural enriquecida, isto
é, com incremento funcional
em relação ao metaestado an-
terior.
Fonte: Acervo do autor
Dizemos, nesse caso, que o estado da paisagem produzido pela in-
tervenção humana é de uma paisagem enriquecida, uma vez que novas
funcionalidades são agregadas àquelas anteriormente existentes. Inúme-
ros exemplos poderiam ser relacionados para exemplificar essa condição,
desde a diversificação de plantas alimentares por melhoramento genético
9 Nos utilizamos aqui do conceito de Westerink et al. (2017), para quem os serviços da paisagem correspon-
dem a funções, fenômenos e propriedades sistêmicas da paisagem em dinâmicas interações geossistêmicas que pro-
vêm bem-estar ao ser humano. O termo foi utilizado pela primeira vez por Termorshuizen e Opdam (2009), tendo por
princípio que as paisagens são sistemas heterogêneos, funcionais e estruturalmente adaptados pelos usuários humanos.
10 Toda paisagem apresenta uma dada estrutura fisionômica produzida pela interação dialética entre o fluxo de
energia ingressante e as propriedades de resistência e resiliência dessa estrutura paisagística, produzindo uma con-
dição de metaestado diante das pequenas flutuações derivadas dos pulsos de energia ao longo do tempo (variações
estacionais, flutuações do regime hídrico, fenômenos climáticos extremos e ocasionais, impactos humanos isolados
e não duradouros etc.). Todavia, sempre que a estrutura da paisagem é submetida a uma energia intensa, concentrada
ou distribuída no tempo, que tende a alterar, ainda que de forma provisória, a condição do seu metaestado, o sistema
busca estabelecer um novo nível de equilíbrio termodinâmico, configurando aquilo que Muñoz (1998) denomina
“passagem estrutural”.
94
(realizado há milhares de anos pelos povos originários), até intervenções
estruturais na paisagem que tem a função de ampliar sua capacidade de
resiliência (introdução regulada de novas espécies que buscam restaurar
equilíbrios bióticos perdidos, sistemas controlados de irrigação que bus-
cam ampliar a oferta de umidade no solo, construção de terraços agrícolas
que buscam reduzir a erosão das vertentes, processos de fertilização natural
dos solos etc.).
Na medida em que essas passagens estruturais vão sendo produzidas
de forma lenta e sustentável, com um enriquecimento funcional que acaba
por expressar na estrutura paisagística a marca da cultura humana que a
produziu, nós encontramos ali uma paisagem cultural, ou seja, uma pai-
sagem “(...) com dados e códigos explícitos acerca do sistema de valores
que dá um sentido de vida aos grupos humanos instalados em diferentes
ambientes (MATEO RODRIGUEZ, 2013, p.21). Isso representa, em outras
palavras, uma condição extrema (e não degradadora) de “domesticação
da paisagem” (FIGUEIRÓ, 2014), e quando o espaço é domesticado, isto
é, reorganizado/transformado a partir da racionalidade humana que busca
maior segurança, conforto ou eficiência, a paisagem passa a ser ingrediente
fundamental de coesão dos grupos humanos que a habitam, reforçando os
mecanismos de resiliência e garantindo condições de estabilidade (TER-
RELL et al., 2003). Têm-se aí o ponto no qual os ecossistemas naturais dão
origem aos antroecossistemas (ELLIS, 2015),
Essa domesticação da paisagem, que envolve a modificação gradu-
al dos seres vivos, além da reorganização dos elementos da natureza ma-
nejados pelas comunidades humanas, define o principal processo atuante
dentro das paisagens antropocênicas: a construção social do nicho (SMITH,
2007). Ou seja, diferentemente da maior parte das demais espécies vivas,
submetidas à seleção natural do meio, que evoluem como forma de adap-
tação às condições da natureza, os seres humanos (ainda que não apenas
eles) modificam as condições do meio para adaptá-lo às suas necessidades.
Nesse quesito em particular, devemos reconhecer que os seres humanos
são construtores de nicho especialmente eficazes, graças a sua capacidade
para gerar e transmitir cultura; na medida em que somos capazes de simbo-
lizar, nossa capacidade de interagir e cooperar com uma enorme quantida-
de de indivíduos não aparentados, nos coloca na condição da espécie mais
ultrassocial do planeta (TOMASELLO, 2014).
Conforme a natureza é transformada, a complexidade da paisagem
acompanha o grau de transformação, aumentando-a ou reduzindo-a, con-
forme a qualidade e a intensidade da transformação. Logicamente, essa
construção social do nicho desencadeada pela sociedade humana mobiliza
95
mecanismos de seleção natural em outras espécies, com nítido favoreci-
mento às espécies domesticadas ou com maior plasticidade ecológica. No
entanto, ao invés de encararmos essas mudanças de forma generalizada
como uma elevação dos níveis de entropia no sistema (ainda que não pos-
samos fechar os olhos ao fato de que boa parte delas o seja), talvez seja
possível começar a buscar, neste mar de incertezas
,em que fomos jogados
na velocidade do Antropoceno, elementos de mudanças que nos permitam
compreender essa “natureza híbrida” como um novo metaestado de equi-
líbrio flutuante na relação sociedade-natureza, nem melhor e nem pior do
que a “natureza primitiva” idealizada pelos naturalistas, apenas diferente.
Há que se destacar, no entanto, que o que caracteriza fortemente as
paisagens culturais, e as diferencia das paisagens antropo-naturais enrique-
cidas, é a efetiva materialização de uma (inter)ação entre a natureza e a cul-
tura, ou seja, não apenas a natureza se reorganiza para expressar os traços
culturais de uma comunidade, mas também a cultura dessa comunidade se
constrói historicamente tendo por referência e limites as estruturas e os pro-
cessos da natureza que habita (figura 6). Assim, a paisagem passa a ser, ao
mesmo tempo, nutrida e nutridora de representações, imagens e sentidos
(CANTERO, 2004). Nas palavras de Menegat,
(...) quando uma cultura domestica a paisagem ao longo do tempo
ela ajusta os instrumentos culturais, desde habitação até visão de
mundo, àquele lugar. O processo de domesticação não é outro
senão a transferência do DNA do lugar à cultura, e vice-versa, de
modo que ambos se pertençam (2008, p.7)
Se, por um lado, a construção social do nicho é a principal responsá-
vel pela hibridização da natureza, por outro lado, esse processo só ocor-
re mediante a capacidade comunicativa de transmissão intergeracional da
cultura. Essa envolve a linguagem, a memória histórica e a memória afetiva
das comunidades em interação próxima com a natureza; essencialmente,
uma memória geo-bio-cultural, balizadora de metabolismos socioecológi-
cos de elevada sustentabilidade e resiliência, uma vez que os arranjos téc-
nico-institucionais derivados de tais forças se baseiam em um conjunto de
princípios similares àqueles que organizam o funcionamento da natureza: a
diversidade, a natureza cíclica dos processos, a flexibilidade adaptativa, a
interdependência e os vínculos associativos e de cooperação.
96
Figura 6 - O milenar siste-
ma de pastoreio na Serra
da Estrela (Portugal) não
apenas foi adaptando as
ovelhas às gramíneas que
ali se desenvolvem e os
cachorros às ovelhas, mas
também foi provocando
sucessivas mudanças na
composição botânica (de-
vido ao pastoreio seletivo
de ovelhas que age como
seleção natural sobre a
comunidade de plantas)
e na forma como essas
comunidades de pastores
constroem sua cultura
(suas lendas, seus saberes,
a forma de construir suas
casas, sua organização do
tempo, suas formas de
cooperação). Portanto, a
montanha, os pastores, as
ovelhas, as gramíneas e os
cachorros estão submetidos a um processo coevolutivo de longo prazo que define o mútuo pertencimento de todos a
essa paisagem cultural portuguesa.
Fonte: https://www.abrilabril.pt/cultura/romaria-de-pastores-da-serra-da-estrela-vira-documentario
Dessa forma, as paisagens antropocênicas (os antroecossistemas) vão
sendo alteradas por meio de processos evolutivos na construção do nicho
sociocultural ao longo das gerações humanas, “acumulando, perdendo e
combinando heranças culturais, materiais e ecológicas por meio de pro-
cessos graduais de seleção, acumulação, atrito e recombinação” (ELLIS,
2015, p.304), que acabam por se transformar em benefícios adaptativos a
indivíduos, grupos e sociedades (figura 7). Nas palavras de Laureano:
A modificação do ambiente é realizada por meio de conhecimen-
tos e técnicas que são o resultado de experiência coletiva de longo
prazo. Este conhecimento é produzido por pessoas e repassado a
pessoas por atores reconhecíveis e competentes. É sistêmico (in-
tersetorial e holístico), experimental (empírico e prático), passado
de geração em geração e tem valor cultural. Este tipo de conhe-
cimento promove a diversidade, valoriza e reproduz os recursos
locais. Cada técnica não é um expediente para resolver um único
problema, mas é um sistema elaborado e muitas vezes polivalente
com base na gestão cuidadosa dos recursos locais. Faz parte de
uma abordagem integrada (sociedade, cultura e economia) que
está estritamente ligada a uma ideia e percepção do mundo que
se materializa na paisagem, que se torna fruto do microcosmo de
97
uma cosmovisão. Portanto, a técnica tradicional é parte de um con-
junto de links e relacionamentos fortemente integrados e apoiados
por símbolos e significados. (2012, p.08)
Justamente por serem sistemas de alta complexidade, produzidos em
tempo lento de mútuas adaptações11 (que envolvem diversidade, criativi-
dade, memória e mudanças de ambas as partes), as paisagens culturais
tendem a ser as paisagens com o mais alto nível de valor patrimonial e para
as quais se dirige a maior parte das reflexões e dos debates acerca das
estratégias de conservação. Nesse caso, cabe aqui chamar a atenção para
a significativa guinada paradigmática assumida pela UNESCO a partir de
2012, com relação a essas paisagens.
Figura 7 - Modelo conceitual de
mudanças de regime na constru-
ção sociocultural do nicho hu-
mano nos principais tipos de sis-
temas produtivos. Ainda que as
mudanças genéticas da espécie
possam ser consideradas insig-
nificantes desde o início do Ho-
loceno, o acúmulo das heranças
culturais, materiais e ecológicas,
de uma geração à outra, amplia
a complexidade das interações e
promove uma paisagem cada vez
mais antropodependente (A),
permitindo que transitemos da
classe das paisagens holocências
para as paisagens antropocênicas
(B)
Fonte: Adaptado de Ellis (2015,
p.305)
A política internacional de proteção da paisagem, focada no seu as-
pecto patrimonial, sempre esteve pautada na ideia de “monumentalidade”
e espetacularidade (SCIFONE, 2008). No entanto, esse direcionamento se
11 Mateo Rodriguez (2013) chama a atenção para a distinção que se estabelece entre a “adaptação” (resposta
construída pela comunidade após um longo período de exposição a um dado problema, resultando em mudanças estru-
turais, biológicas ou culturais) e a “adequação” (resposta de prazo mais curto, envolvendo ampliação do uso tecnológi-
co ou instrumental e/ou mudança em práticas e comportamentos com vistas à melhoria de qualidade/produtividade na
relação com o ecossistema). Nesse sentido, diz o autor, “(...) a cultura como estratégia adaptativa é uma plataforma
complexa que dificilmente pode ser entendida sem analisar de que maneira as sociedades buscam estratégias adap-
tativas que lhes permitam manter um certo equilíbrio com o meio externo” (op.cit., 2013, p.18)
98
alterou a partir do simbólico quadragésimo aniversário da Convenção do
Patrimônio da Humanidade, celebrado em Florença, em setembro de 2012,
com o sugestivo tema de “A proteção internacional das paisagens” (LAU-
REANO, 2012). Na ocasião se celebrava, também, o vigésimo aniversário
de incorporação da “paisagem cultural” como categoria patrimonial12.
Na reunião de Florença, a principal demanda estava relacionada à ne-
cessidade de abandonar a ideia de patrimônio como uma herança disso-
ciada da cultura e das atividades humanas cotidianas, evoluindo-se da con-
servação dos objetos (os monumentos) para a proteção das pessoas, como
verdadeiros impulsionadores do valor patrimonial, seja na sua criação, seja
na conservação e manutenção de sua funcionalidade. Por isso mesmo, tra-
tou-se de revisar o próprio conceito de paisagem cultural (MARTÍN, 2017),
com a finalidade de ampliar o número e a diversidade de paisagens prote-
gidas, renunciando à obrigatoriedade que até então se colocava do “Valor
Universal Excepcional”. A partir de Florença, a UNESCO passa a reconhecer
a importância dos valores patrimoniais presentes em paisagens quotidia-
nas, entendendo que proteger as paisagens significa estender essa pro-
teção para o território onde ela se localiza e, também, à sociedade que a
criou, sua cultura e suas tradições. Isso representa, efetivamente, uma nova
visão de paisagem frente ao que se defendia até então (quadro 1).
Quadro 1
,- Comparação entre os critérios utilizados pela UNESCO na conservação do patrimô-
nio mundial desde 1972 e a nova visão estabelecida a partir da Declaração de Florença, de 2012.
CONVENÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL NOVA VISÃO DA PAISAGEM
Universalismo Multiculturalismo e diversidade
Definição fixa Definição evolutiva e regionalmente adaptada
Separação entre natureza e cultura Integração entre natureza e cultura
Lista de paisagens de excelência Todas as paisagens são passíveis de conservação
Busca de valores excepcionais Referência a paisagens cotidianas
Conservação do patrimônio tangível Conservação do patrimônio tangível e intangível
Patrimônio como algo estático Patrimônio como algo dinâmico
Foco no monumento Foco no ecossistema
Aproximação museográfica Aproximação social, produtiva e evolutiva
Prioridade na conservação Prioridade na prevenção, gestão e preservação através
da mudança
Autenticidade Preservação dos conhecimentos tradicionais
Voltada para uma herança universal Voltada para as pessoas e comunidades
Fonte: Adaptado de Laureano (2012, p.7)
Voltando à classificação taxonômica expressa na figura 4, naqueles ca-
sos em que as paisagens antropo-naturais não se desenvolveram pelo mú-
tuo acoplamento estrutural da sociedade e da natureza, também temos a
12 Ocorrida a partir da reunião do comitê de especialistas da UNESCO realizada em La Petite Pierre (França),
em 1992.
99
possibilidade de, ao menos, a intervenção humana caminhar para a garan-
tia das funcionalidades originais da paisagem ou, até mesmo, do enriqueci-
mento funcional que não necessariamente precisa resultar na formação de
uma paisagem cultural, mas que contribui para um ganho de estabilidade
do sistema paisagístico. Nesses casos, apontamos a estabilidade da paisa-
gem como um estado de equilíbrio regulado, ou seja, ainda que o sistema
geoecológico tenha a tendência de perder a funcionalidade original, devi-
do ao estresse estrutural provocado pela intensidade da energia aportada,
a regulação do equilíbrio se dá a partir da intervenção humana estabilizado-
ra, evitando as perdas estruturais (e funcionais) mais drásticas, que ocorrem
em paisagens com entropia máxima. É o caso, por exemplo, das paisagens
protegidas que estão localizadas em áreas de grande pressão econômica
(figura 8).
Figura 8 - O Parque Estadual do Turvo, representa uma unidade de conservação criada em 1947,
no noroeste gaúcho, para salvaguardar o último grande fragmento de Floresta Estacional Semi-
decidual existente no RS. Localizado às margens do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina, a
garantia do equilíbrio ecológico da floresta é dada tão somente pela regulação humana, que pre-
serva a estrutura florestal no estrito limite do Parque, já que as áreas circundantes foram comple-
tamente devastadas pela expansão da soja. Assim, diferentemente de algumas UCs da Amazônia,
por exemplo, onde o atual status de proteção legal de Parque pouca diferença faz sobre o fun-
cionamento atual da paisagem natural ali presente, no Parque Estadual do Turvo, não é possível
dizer que há uma paisagem natural, e sim uma paisagem antropo-natural com permanência fun-
cional, cujo estado de equilíbrio regulado cabe à política do sistema humano de conservação.
Fonte: Imagem extraída do Google Earth
Isso acaba sendo verificado, também, em paisagens urbanas ou rurais
manejadas a partir de princípios permaculturais, ou paisagens de explora-
ção agrícola extensiva e sustentável, que envolvem produção agroflorestal,
pecuária extensiva, extrativismo sustentável etc. Em outras palavras, venci-
100
do o preconceito de que a ação humana é sempre e inexoravelmente des-
truidora, é possível perceber algumas possibilidades de feedback humano
que retroalimentam positivamente os sistemas paisagísticos, garantindo ou,
até mesmo, enriquecendo funcionalmente a paisagem. Isso se evidencia
nos casos em que a paisagem é manejada por uma “inteligência de enxa-
mes” (FIGUEIRÓ, 2012), como no caso dos planejamentos de cidades inte-
ligentes e sustentáveis (BIBRI; CROGSTIE, 2017).
A inteligência de enxames, ou swarm intelligence, nasceu nas ciências
da computação e na biologia, buscando compreender o comportamento
coletivo de sistemas auto-organizados, flexíveis, dinâmicos e com gestão
descentralizada. Baseada no princípio de que os indivíduos são capazes de
perceber e modificar localmente seu ambiente com base no comportamen-
to dos demais indivíduos com quem interagem, essa teoria prevê a possi-
bilidade da emergência de padrões funcionais globais, mesmo na ausência
de um controle centralizado ou de um “modelo” global pré-definido. Se
considerarmos a noção termodinâmica de desenvolvimento como um pro-
cesso evolutivo desencadeado pelas interações locais entre os componen-
tes do sistema paisagístico, cuja trajetória não pode ser prevista a priori,
então somos obrigados a reconhecer que a inteligência de enxames ofere-
ce uma contribuição teórica fundamental para pensarmos o enriquecimento
funcional e a sustentabilidade como propriedades sistêmicas capazes de
permitir que as sociedades coevoluam com mais qualidade e estabilidade,
a partir de sistemas paisagísticos adaptados às condições do Antropoceno.
Infelizmente, esses estados da paisagem ainda são minoritários frente
a uma grande diversidade de paisagens antropo-naturais com amplo gra-
diente de perdas funcionais, decorrentes da pressão da ocupação superior
à capacidade de resiliência do sistema paisagístico. Não faltam pesquisas e
dados que atestem o impacto sinérgico dessas perdas na biosfera terrestre,
tal como discutimos no início deste texto.
Consideramos que essas paisagens apresentam um estado degra-
dado, que produz uma progressiva redução da complexidade, seja pela
simplificação artificial do sistema, seja pela perda estrutural decorrente do
estrangulamento dos fluxos homeostáticos originais (figura 9). Essa perda
pode ser calculada por meio do Coeficiente de Transformação Antropogê-
nica proposto por Shishenko (apud MATEO RODRIGUEZ; SILVA; CAVAL-
CANTI, 2004), a partir do qual é possível classificar as paisagens segundo o
seu grau de hemerobia13. A cada nova perturbação, o sistema paisagístico
13 A hemerobia expressa o nível de interferência humana no sistema da paisagem, definindo, por conseguinte,
tanto o seu grau de naturalidade (SUKOPP, 1972), quanto o grau de dependência tecnológica e energética necessário
para a manutenção do seu equilíbrio homeostático (HABER, 1990), variando, segundo Naveh e Lieberman (1984)
101
se depara com um “ponto de bifurcação” que antecipa a fronteira entre a
manutenção da estabilidade a partir de um dado patamar (uma retroação
positiva que age na correção dos desequilíbrios) e a produção do caos que
é gerada com a ruptura da informação termodinâmica.
Essas bifurcações formam a principal característica dos sistemas com-
plexos, uma vez que implicam na existência de um ponto vulnerável de
indeterminação entre a estrutura e o estado do sistema da paisagem, na
medida em que o “estado” corresponde à resultante da dialética de forças
entre a entropia e a neguentropia14 . Nos casos em que a pressão entrópica
supera as possibilidades de informação termodinâmica, a paisagem assu-
me progressivos patamares de degradação estruturo-funcional até atingir a
condição de não retorno absoluto, quando então, passa a ser considerada
uma paisagem colapsada.
Figura 9 - As paisagens antropocênicas com perdas funcionais apresentam um enorme gradiente
de estados, desde as paisagens degradadas até as paisagens colapsadas. Na foto da esquerda, vê-se
a imagem de uma sub-bacia degradada no vale do Paraíba, em São Paulo, com destaque para as
cicatrizes erosivas (em pontilhado) produzidas pela ruptura das funcionalidades geo-hidro-eco-
lógicas da Mata Atlântica desde o avanço do cultivo do café no período do Brasil Colônia. O re-
torno ao metaestado de equilíbrio original, ainda que possível, é bastante improvável, como atesta
seu estado atual de degradação,
,passado mais de meio século de abandono produtivo da área. Na
foto da direita, a imagem de uma paisagem colapsada no município de Caçapava do Sul (RS),
referente à mineração de cobre a céu aberto abandonada desde a década de 1990. Paisagens como
essa podem sofrer processos de refuncionalização por meio do turismo ou esportes de aventura,
mas jamais serão capazes de recompor as funções ecológicas anteriores, o que pressupõe perdas
em cadeia devido às funções holárquicas da paisagem.
Fonte: Acervo do autor
desde as paisagens a-hemerobióticas (paisagens naturais) até as paisagens consideradas meta-hemerobióticas (paisa-
gens culturais).
14 Enquanto a entropia representa a desordem da energia produzida pelos fluxos não homeostáticos de ex-
ploração da paisagem (ocupação ou extração em excesso e desreguladas), resultando em erosão estrutural e perdas
de funcionalidade, a neguentropia é o seu oposto dialético, reunindo todas as forças (informações termodinâmicas)
responsáveis por gerar uma retroação positiva, capaz de atribuir resistência e resiliência ao sistema, garantindo a sua
sustentação a longo prazo.
102
Felizmente esse não se trata de um caminho linear e inexorável, já que
a cada ponto de bifurcação é possível assumir uma escolha divergente,
enriquecer funcionalmente a paisagem, recompor e reconstruir. Uma impor-
tante contribuição ao entendimento dessa capacidade de autorregulação
dos sistemas socioambientais vem do conceito de “autopoiése” proposto
pelos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela (MATURANA;VARE-
LA, 2001). Esse conceito parte da ideia de que a flexibilidade e a criativida-
de são princípios inerentes à informação celular de todos os seres vivos, do-
tando-os, desde a sua origem, da capacidade necessária para se adaptarem
(poiesis=criação) às flutuações de energia e às mudanças dos patamares
hierárquicos de organização.
Essa capacidade se reflete, também, e de forma fractal, em todos os
níveis superiores de organização dos seres (das células à sociedade), ga-
rantindo a propriedade central das paisagens antropocênicas: adaptação.
Ainda há muito para se refletir, teorizar, experimentar e concluir sobre esse
processo, porém, se não formos capazes de superar a noção ingênua de
que é preciso lutar pelo retorno ao Éden, continuaremos a lutar as bata-
lhas do século XIX, imersos em uma natureza cada vez mais degradada e
colapsada. Nossa distorção perceptiva faz com que continuemos lutando
contra o jardim, desejando a floresta, sem perceber que caminhamos para
as paisagens lunares.
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AGRADECIMENTOS
Fica aqui o meu mais profundo agradecimento ao meu grande mestre,
colega e amigo, José Manuel Mateo Rodriguez, que me ensinou que se
aprende sobre as paisagens caminhando. Para onde quer que tua boa ener-
gia tenha caminhado, meu amigo, saiba que estaremos sempre seguindo
tuas pegadas!
107
DAS PAISAGENS ORIGINÁRIAS ÀS
PAISAGENS ANTROPOGÊNICAS:
AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
DA NATUREZA COMO
TESTEMUNHO DE UM PERCURSO
Valdir Adilson Steinke
Gabriella Emilly Pessoa
Sandra Barbosa
INTRODUÇÃO
Seguramente, inúmeros leitores e pesquisadores são levados a acreditar
que discutir a definição de paisagem é algo infrutífero. Tal conceito, de acordo
com alguns, já está superado. Torna-se deveras corriqueiro encontrar uma defi-
nição simples - e até objetiva - de paisagem, induzindo pessoas ao erro de que
o conceito de paisagem está exaurido.
No entanto, ao ampliar e aprofundar o debate, colocando algumas ques-
tões mais contundentes em foco, é inevitável perceber que o tema exige mais
seriedade. A paisagem impõe um conjunto de reflexões, argumentos e consi-
derações que reconstroem os elementos capazes de subsidiar o conceito de
paisagem.
Neste primeiro exercício, não se trata de defender quais áreas do conheci-
mento tem mais razão e propriedade a respeito do conceito, pois a diversidade
de abordagens - que muitas vezes não conversam entre si - é intrínseca a própria
fragmentação das ciências e áreas afins, peculiares do século XX. Nesse sentido,
a Biologia, a Geografia, a Geologia, as Artes, a Arquitetura, a Filosofia, entre ou-
tras áreas do conhecimento, debruçaram-se sobre essa terminologia e, dentro
do que as suas demandas esboçaram, deram ao conceito o significado que mais
se adequou aos propósitos específicos de cada área.
Isso, por si só, já se consolida como uma evidência da miscelânea de con-
cepções. Consequentemente, gera uma certa confusão aos leigos e, até mes-
108
mo, aos mais experientes - porém desavisados - investigadores. Em uma
leitura superficial, leva a crer que essa polissemia é apenas um resultado da
complexidade da paisagem. Contudo, é possível perceber que a miscelâ-
nea de significados empregados ao termo não passa de uma fuga elegante
do enfrentamento da complexidade; complexidade que a paisagem carre-
ga consigo em qualquer que seja a área do conhecimento.
Essa fuga se revela
,.384
geossisteMa CárstiCo e geoeCologia da paisageM
raFael brugnolli Medeiros___________________________________ .414
14
paisageM e Cobertura Vegetal:
Da Generalização ás Especificidade da Caatinga
dr. bartoloMeu israel de souza
MsC. Joseilson raMos de Medeiros
dr. rubens teixeira de Queiroz_______________________________ .439
nuVens, néVoas e neblinas:
DESCORTINANDO PAISAGENS CLIMÁTICAS NA ZONA DA MATA MINEIRA
edson soares Fialho_______________________________________ .460
SOBRE OS AUTORES_____________________________________ .496
15
PREFÁCIO
OS DE HOJE, OS MODERNOS E OS DE ORIGEM AO
REDOR DE UM TEMA CHAVE
A Geografia surgiu sob o signo da paisagem. Viajante e espírito atento,
Estrabão registra no seu olhar arguto a diferença dos lugares, atribuída à
diferença das paisagens, a paisagem formando os lugares e os lugares for-
mando os homens, num mundo que se faz na e como diferença. Geo-gra-
fia é, então, o nome que dá a essa forma de ver e saber que com ele está
nascendo. Prescrutador da relação das coisas em seus lugares e interações,
Ptolomeu, seu quase contemporâneo, vê na interação da visualidade das
partes da superfície terrestre o que desta faz o efeito convergente-diver-
gente do Cosmos, o geral que liga e diversifica o todo num quadro de múl-
tiplos pontos. Todo e partes, partes e todo, Estrabão e Ptolomeu pensando
o desafio de explicar, como bons gregos de cultura clássica, uma dialética
de totalidade de antagonismos encravada embaixo do domínio de Roma.
Dois arquétipos, dois paradigmas, assim construídos ao redor de um
mesmo tema, o sentido e o significado da paisagem, distintos no modo de
olhar a grafia da superfície da terra, o indutivo-dedutivo, de Estrabão e o
dedutivo-indutivo, de Ptolomeu. Alguns diriam idiográfico de um e nomo-
tético de outro. Arquétipos antigos, reproduzidos, porém, no olhar con-
temporâneo dos paradigmas que permanentemente os recriam em novas
formas. Dois arquétipos, e seus paradigmas, que inauguram a forma uno-
-múltipla com que desde então vemos a Geografia. O arquétipo ora diverso
de Estrabão, ora unitário de Ptolomeu. Tornados múltiplos paradigmáticos
mesmo quando da dialética da unidade da diversidade do gênio de Hum-
boldt.
É esse quadro de um saber a um só tempo uno e múltiplo que me traz
à mente a leitura desse Geografia da Paisagem: múltiplas abordagens, or-
ganizado pelos colegas Charlei Aparecido da Silva, Edson Soares Fialho e
Valdir Adilson Steinke, analisando e inovando o tema básico da paisagem.
O que sugnifica, a própria Geografia. Ora num arquétipo. Ora noutro. To-
dos remetendo, embora, à unidade-diversidade da visão de ntegralidade
16
de Humboldt, aqui e ali reiteradamente citado. O hoje numa relação recria-
dora e tributária dos ontens, qual seja, a plêiade de pensadores que surgem
e reduplicam no longo do trajeto da história dessa ciência. Com eles, o
conceito-chave da paisagem. O conceito aqui de Sochava, ali de Bertrand,
noutro canto de Tricart, e outros tantos, como
nossos Aziz Nacib Ab` Sáber e Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro,
os autores de hoje mostrando no conceito de agora o contributo dos que
despontam como sua referência.
Eis que sob a unicidade técnica, percebida nos inicios da globalização
por esse outro clássico que é Pierre George, atento à destruição e rearran-
jo das configurações de espaços da urbano-industrialização do pós-anos
1950, a paisagem se faz arranjo (o arranjo territorial), a distribuição das lo-
calizações que age por trás e por dentro da sua ordem orgânica, descaman-
do e transformando a riqueza da paisagem numa pura e seca estrutura de
fragmentos de espaço. O arranjo de espaço da sociedade descerrada dos
seus encantos e imprevistos, a sociedade do desencanto do olhar crítico de
Max à sociedade tecnificada do capitalismo. A sociedade da contradição
homem-natureza emergida da acumulação primitiva, diremos nós, que hoje
se revela um simulacro de ordenamento recíproco do espaço da natureza e
do espaço do homem. Relação já em si frágil, qual o meio do conceito de
meio instável de Tricart, aqui pensada a propósito da relação de sobreposi-
ção do homem e do meio com que a relação homem-natureza se edifica na
e como uma acumulação primitiva.
Relação de correlação aqui e ali hoje desmontada na emergência dos
extremos climáticos. Para ficarmos no exemplo mais conspícuo e midiati-
camente conhecido da chamada crise ambiental global. O arranjo espacial
mais e mais fluido do ordenamento da natureza defasando e conflitando o
mais fixo e consolidado do ordenamento do assentamento humano. De-
sajustamento que enseja à criatividade dos geógrafos e da Geografia o
desafio superativo dos seus também desajustes. Qual seja, o poder de uni-
cidade explicativa e de intervenção praxiológica de uma ciência assentada
numa teoria estruturada desde os anos 1970 nos termos e predicados da
lógica dialética e mantida numa forma de cartografia/geotecnologias ainda
estruturada nos termos e predicados da lógica formal. Dissonância que a
explosão das contradições espaço-ambientais contemporânea pede seja
resolvida, juntando uma lógica e outra, a formal das geotecnologias e a
dialética da teoria. A lógica da forma (a formal das técnicas de representa-
17
çãoi) e a lógica do conteúdo (a dialética dos conceitos) por sua vez ajusta-
das. Passível e possível de fazer-se, estou certo disso, necessária, mais que
isto, por tratar-se de um quadro epistemológico de um saber centrado, por
definição, justamente no par paisagem e espaço, visível e invisível, aparên-
cia e essência, forma e conteúdo, Faces em si recíprocas de uma só moeda,
o discurso e
representação analíticos dos estados orgânicos do mundo. Superação
do encontro-desencontro da face teórica e da face técnica que tematizo
num texto-convite, convite de Charlei e convite à nossa reflexão, feito para
o fim de outra coletânea, igualmente organizada pelo deligente e incansá-
vel Charlei, tema (o ordeamento do espaço) e armas (a cartografia e geo-
tecnologias) que fazem historicamente da Geografia uma ciência de grande
fôlego.
É uma coletânea de diferentes olhares sobre a categoria-força que deu à Geografia
o poder do entendimento analítico das faces do mundo com que ela ficou conhecida, a
categoria da paisagem-arranjo sob a qual e na forma da qual se modela o modo tenso
de vida do nosso espaço vivido, hoje em esfacelamento. Obra coletiva em boa hora
tornada pública. A hora do momento em que, com toda sua força destrutiva, as contra-
dições do modo com que nosso mundo espaço-ambientalmente se constrói historica-
mente vêm à tona. E põe a Geografia e os geógrafos no olho do furacão.
Um livro de instigação e fundamentos fortemente correspondente ao nosso tem-
po. Importante. Necessário. À leitura, pois.
Ruy Moreira
Universidade Federal Fluminense
18
A PAISAGEM NA
GEOGRAFIA FÍSICA OU
PAISAGEM E NATUREZA
Dirce Maria Antunes Suertegaray
INTRODUÇÃO
Outro tipo de prazer é o produzido pela configuração concreta
da paisagem, pela forma da superfície do globo em uma região
determinada. As impressões deste gênero são mais vivas, melhor
definidas, mais de acordo com certos estados de ânimo. (Alexan-
der Von Humbolt, Cosmos, 1982)
Antes de iniciar a apresentação do tema, cabe explicitar o título. Pre-
tende-se, neste texto, que a paisagem da Geografia Física, sugerida como
tema de abordagem, seja deslocada para a estudos da Natureza, conceito
que considero pertinente num debate em Geografia.
Início trazendo uma lembrança que corresponde à memória de minha
primeira aula de Geomorfologia, ministrada pelo saudoso Ivo Lauro Muller
Filho, meu professor na UFSM. Era um excelente professor e desenhista,
que, ao iniciar aquela aula, dirigiu-se ao quadro negro (à época, não era
verde) e desenhou o que denominamos paisagem, representada por um
conjunto de elementos naturais: uma montanha, um rio, vegetação,
,na nítida simplificação utilizada em todas as áreas
citadas anteriormente: a percepção como função central para análise da
paisagem, seja de interpretadora da paisagem, seja de uma paisagem in-
terpretada.
Ao considerar a percepção como elemento central, é inequívoca a
inserção de variáveis imponderáveis, que possuem um elevado caráter sub-
jetivo, na qual se atribui as preferências daquele que percebe a paisagem.
Seguramente, essas variáveis induzem respostas e são extremamente vul-
neráveis, especialmente para as análises de longo prazo, considerando que
as sociedades não são estáticas no espaço-tempo. Como resultado, pre-
ferências e percepções do passado podem ser distintas no presente e no
futuro.
Por isso, as meras relações causais, quando inseridas de modo hierár-
quico ou quando as hierarquias são impostas por percepções de indivíduos,
grupos e sociedades, não se sustentam no médio e longo prazo, quiçá por
estarem viciadas para o próprio tempo presente. Em um ambiente acadê-
mico e científico, qualquer resultado concebido nessas condições, torna-se
não-falseável e, portanto, perde seu valor científico.
Nesse quesito, impõem-se a abordagem complexa, a qual já temos
contribuições relevantes na análise da paisagem. Obviamente, esse cami-
nho é muito mais árduo e com maior número de exigências teóricas e me-
todológicas, que não permitem tratar a Geografia como uma mera “ciência
de síntese”, visto que impõem muito mais do que resultados generalizados
e abreviados. Assim sendo, a contribuição de Monteiro (2000) é valiosa para
definição da paisagem:
“uma entidade espacial delimitada segundo um nível de resolução
do geógrafo (pesquisador) a partir dos objetivos centrais da análi-
se, de qualquer modo, sempre resultante da integração dinâmica,
portanto instável, dos elementos de suporte e cobertura (físicos,
biológicos e antrópicos) expressa em partes delimitáveis infinita-
mente, mas individualizadas através das relações entre elas que
organizam um todo complexo (sistema), verdadeiro conjunto soli-
dário e único, em perpétua evolução.” (MONTEIRO, 2000, p. 39).
109
A abordagem da paisagem, via conceito de unidade complexa abordada
por Morin (1991, 1997), segue na direção de uma interpelação simultaneamente
científica e filosófica. Segundo o autor, os sistemas complexos possuem inter-
relações entre seus componentes e, consequentemente, dos sistemas entre si.
Tanto os sistemas quanto os componentes processam na dependência e inter-
dependência de um organismo complexo, no qual o “efeito mais notável é a
constituição duma forma global retroagindo sobre as partes, e a produção de
qualidades emergentes quer ao nível global, quer ao nível das partes” (Morin,
1997, p. 142).
A paisagem entendida como um sistema complexo retem, essencialmente,
o registro das situações a qual foi submetida. Essas situações ocorridas no sis-
tema podem ser significativas para definir as origens, os percursos evolutivos,
e, em certa medida, podem indicar cenários futuros. A fim de realizar um diag-
nóstico do estágio atual de um sistema complexo de tal envergadura, a paisa-
gem, é necessário considerar as condições peculiares do instante da análise da
paisagem. Essas devem permitir a investigação dos encadeamentos temporais
e espaciais necessários em diferentes níveis escalares.
Pela complexidade que a paisagem traz consigo, inevitavelmente afronta-
-se um desafio central de cunho estritamente geográfico: as escalas. As diversas
escalas que podem existir em uma única paisagem interagem entre si, horizon-
tal e verticalmente, no espaço-tempo, com todas as suas conexões, inclusive as
“ocultas” (ver Capra, 2002).
Por conta disso, as abordagens para estudos de paisagem passam, neces-
sariamente, por cuidados nos limites de intervenção. Geralmente, os limites de-
rivam de uma lógica política: os parâmetros são os limites definidos pela esfera
administrativa responsável pela gestão territorial, descuidando dos processos
fundamentais de funcionamento latente à paisagem.
Na abordagem adotada no presente texto, procurou-se representar o pro-
cesso complexo e dinâmico de gênese e transformação da paisagem. Aqui, a
paisagem originária é definida como a que antecede a presença humana e, a
partir da inserção da espécie hom*o (Habilis e depois Sapiens), torna-se uma
paisagem antropogênica.
Na figura 01, apresenta-se um esboço dos processos de transformação
temporal. Os hexágonos refletem as células de compartimentação espacial da
paisagem, a qual pode ser moldada para inúmeras escalas temporais e espa-
ciais, sem renunciar à dinâmica constante dos processos atuantes.
110
Figura 01: 1) Esboço da escala temporal de transformação da paisagem originária para
antropogênica e 2) Situações de intervenções na paisagem originária pela inserção
antrópica. A) A paisagem originária diante do surgimento do hom*o Habilis; B) A Paisagem
originária pela intervenção do hom*o Sapiens, considerado como o marco inicial da paisa-
gem antropogênica; C) A paisagem antropogênica pela intervenção acelerada da Revolução
Industrial; e D) A paisagem antropogênica como predominante e deixando suas impressões
advindas do processo de transformação espaço-temporal. Elaboração dos autores.
Os pilares dessa perspectiva são os trabalhos de Schellnhuber (1999), Ste-
ffen et al. (2004, 2011, 2016), Waters et al. (2016), Ellis e Haff (2009), Ellis (2011,
2015), Ellis et al. (2016) e Young (2015). Partiu-se de uma abordagem capaz de
subsidiar o que aqui iremos denominar de paisagens antropogênicas.
Considerando as inúmeras possibilidades para apresentar como resultado,
e levando em consideração a transformação da paisagem, optou-se por obser-
var as unidades de conservação da natureza, implementadas pela esfera fede-
111
ral brasileira no período entre 1937 e 2022, com a perspectiva de referenciar
as unidades - nossos recortes territoriais - como testemunhos relevantes para
exemplificar os resquícios de uma dinâmica geo-histórica.
A EVOLUÇÃO AMBIENTAL NO CONTEXTO BRASILEIRO
Há uma crescente preocupação com o meio ambiente: dentre as questões
centrais discutidas nos fóruns e relatórios ambientais nas décadas mais recentes
(entre 1960 e 2021), destacam-se o acelerado esgotamento de recursos naturais,
a degradação dos ecossistemas, a crise climática, os efeitos da deterioração am-
biental e a necessidade urgente de proteção do meio ambiente.
A participação brasileira institucional no processo de conservação e preser-
vação ocorre a partir da década de 1930. Daí, foram criadas as primeiras áreas
protegidas, com foco na conservação da natureza: os parques nacionais. Mais
tarde, os parques nacionais vieram a integrar o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza (SNUC), vinculadas de modo mais contundente a
esfera federal e formando o conjunto de leis protecionistas (EHRLICH, 2002; OLI-
VEIRA, 2010).
A estrutura ambiental vigente no Brasil foi fortemente influenciada pelo mo-
vimento ambiental internacional. Essa influência percorre desde o Iluminismo
e Romantismo europeu até as correntes ambientais norte-americanas. O ícone
desse movimento global foi a criação do Parque Nacional de Yellowstone, locali-
zado nos Estados Unidos, em 1872. Até então, não havia registros da criação de
parques voltados a preservação e conservação. No Brasil, o final do século XIX
e o início do século XX foram marcados pelo baixo interesse político na criação
de áreas ambientalmente protegidas (RYLANDS & BRANDON, 2005; AGUIAR et
al., 2013). Porém, no século XX, há uma guinada para a preservação do meio am-
biente por estratégia geopolítica. A partir da abertura de fronteiras e da globali-
zação, passa a existir maior envolvimento de grupos de investigação. Em grande
medida, esses grupos acabam por influenciar as instituições públicas, inserindo
o país na temática de proteção ambiental em alinhamento com os principais pa-
íses envolvidos na questão.
Dessa forma, pode-se estabelecer como marco
,zero o ano de 1937, quando
foi criado o Parque Nacional do Itatiaia, no Rio de Janeiro. Em 80 anos, foram
criadas outras 323 unidades territoriais destinadas a proteção e conservação da
natureza no Brasil, protegidas por lei (FRANÇA, 2011; MERCADANTE & VIANA,
2015).
Por deter a maior biodiversidade mundial, o Brasil se consagrou como líder
112
ambiental no cenário mundial. Possuindo entre 15% e 20% das espécies até
então catalogadas, o país lidera o ranking dos dezessete países que detém 70%
da biodiversidade mundial. Ainda, o país abriga o maior número de espécies
endêmicas conhecidas no mundo (FORZZA et al., 2012; CÁCERES et al., 2014;
MAIA et al., 2015; Brazilian Flora Group, 2016; PNUD, 2016).
O Brasil foi o primeiro signatário da Convenção sobre Diversidade Bioló-
gica (CDB) durante a Conferência das Organizações das Nações Unidas (ONU)
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no evento conhecido como Rio 9215.
O país é considerado um membro importante na Conferência das Partes, con-
venções e acordos ambientais mundiais, o que lhe confere responsabilidade
especial no cumprimento dos compromissos de conservação dos ecossistemas
naturais (PRATES & IRVIN, 2015; MMA, 2018).
No que tange a diversidade de ecossistemas, o Brasil abrange seis grandes
biomas classificados (MMA, 2018; IBGE, 2019), localizados em áreas continentais
e áreas litorâneas, contando com um ecossistema marinho costeiro que engloba
a parte marinha e os seus recursos. Entre os seis biomas, dois são considerados
hotspots: a Mata Atlântica e o Cerrado (HENRY-SILVA, 2005; MMA, 2018).
De acordo com Moraes (2005), o território é a materialidade terrestre que
abriga o patrimônio natural de um país, suas estruturas de produção e os espa-
ços de reprodução de uma sociedade. É nele que estão alocados as fontes e
os estoques de recursos naturais disponíveis para a coletividade e os recursos
ambientais existentes.
No entanto, é nesse mesmo território que se acumulam as formas espaciais
criadas pela sociedade em sua trajetória temporal, imprimindo suas digitais em
um processo de apropriação que se dá de diversas formas: social, econômica,
cultural e ambiental. Em consequência disso, vemos a reformulação dinâmica e
complexa das paisagens originárias - anteriores a existência do hom*o Sapiens -
em paisagens antropogênicas.
Nas civilizações pós-Revolução Industrial, inseridas no contexto de globali-
zação, prioriza-se o poder econômico do capital. Com isso, reproduzem-se es-
paços sociais com profundas desigualdades e transformações ambientais, mui-
tas delas irreversíveis para o ambiente natural. Essa irreversibilidade só ocorre
pela precariedade de consciência humana acerca dos valores e benefícios da
natureza preservada. Desse modo, a ênfase se dá no caráter global e interde-
pendente dos países. Os assuntos e problemas ambientais são socializados e
compartilhados para além das fronteiras políticas estabelecidas, embora os be-
nefícios econômicos da degradação ambiental sejam partilhados entre poucos
(HARVEY, 1974; LENOBLE, 1975; BENTON, 1989 e 1994; CASTREE, 1995; HAS-
15 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. O conceito de biodiversidade foi o
centro das discussões. No evento, assinou-se a Convenção de Diversidade Biológica – CDB.
113
SLER, 2005; LIMA, 2011; DOWBOR, 2017).
A destruição dos ecossistemas brasileiros teve seu início na era colonial.
Além da instalação de populações ao longo da costa e o genocídio das popula-
ções indígenas, houve a primeira superexploração do país em seu primeiro ciclo
econômico: o Pau-Brasil, que gerou um grande desmatamento da Mata Atlânti-
ca e a ameaça de extinção da espécie.
O segundo ciclo econômico brasileiro perdurou do século XIX até 1930,
sendo conhecido como Ciclo do Café. Esse ciclo afetou principalmente as flo-
restas das regiões sudeste e nordeste do país, ocupadas por grandes proprie-
dades produtoras de café. A grande produção da sem*nte comprometeu os
estoques hídricos que abasteciam a capital onde residia a corte brasileira: o Rio
de Janeiro. Consequentemente, houve desapropriações das fazendas de café
para recuperação de florestas; um dos primeiros registros da intenção de criação
de espaços protegidos. Embora não delimitadas geograficamente, essas áreas
se converteriam, mais tarde, em Unidades de Conservação reguladas por lei
(HASSLER, 2005; FRANCO et al., 2015).
As Ordenações Filipinas possuem grande influência na legislação brasilei-
ra quanto ao estabelecimento de regras de controle da exploração da vegeta-
ção, do uso do solo, das águas continentais e marinhas, e da caça. Foi entre as
décadas de 1930 e 1960 que se consolidaram, na legislação do Brasil, os primei-
ros elementos de garantia de um regime diferenciado de proteção e gestão de
partes importantes e estratégicas do território brasileiro.
Na década de 1930, com a posse de Getúlio Vargas como Presidente da
República, ocorreram diversas mudanças no cenário político. Com o objetivo
de colocar o Brasil no rumo da modernidade e criar articulações internacionais
como estratégia geopolítica, a conservação do meio ambiente se tornou um
dos assuntos em destaque. Como estava presente nos debates internacionais,
Vargas aderiu a essa agenda com a criação dos primeiros parques nacionais.
Nesse período, foram promulgadas as primeiras leis de proteção dos recursos
naturais e as primeiras áreas protegidas, como modo de consolidação do tími-
do movimento conservacionista que se tornaria efusivo em décadas posteriores
(BORGES, 2009; FRANCO et al., 2015).
No ano de 1937, foi oficialmente criada a primeira Unidade de Conserva-
ção (UC) Federal: o Parque Nacional de Itatiaia, localizado no Rio de Janeiro.
Logo em seguida, em 1939, foram criados os parques nacionais do Iguaçu e
da Serra dos Órgãos. Os Parques Nacionais foram as primeiras categorias de
unidades de conservação (UCs) a serem criadas no país. Além dos Parques, a ca-
tegoria de Florestas Sustentáveis, também prevista na época, tinha a finalidade
econômica de exploração sustentável de recursos florestais. A regulamentação
dessas áreas, por meio do uso sustentável, tinha como objetivo evitar o esgo-
114
tamento das florestas. Até início da década de 1970, essas duas categorias se
revezaram nas criações de UCs federais e, posteriormente, outras categorias
foram definidas (HASSLER, 2005), conforme veremos adiante.
Até o final da década de 1960, o país não possuía critérios técnicos adequa-
dos para a escolha de áreas protegidas, que eram definidas basicamente por
meio de sua beleza cênica e oportunidade política.
O Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), criado em 1967
e vinculado ao Ministério da Agricultura, coordenou e implementou medidas vi-
sando a utilização racional e proteção dos recursos naturais e o desenvolvimento
florestal. Já a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) foi criada em 1973,
ligada ao Ministério do Interior, atuando no controle da poluição, promovendo a
educação ambiental para a sociedade e a proteção dos ecossistemas. Esses dois
órgãos se alternaram na gestão e fiscalização dessas áreas até o final da década
de 1980 (MITTERMEIER et al., 2005).
A vinculação hierárquica dos órgãos ambientais no governo dessa época
entrava em contradição com os objetivos conservacionistas. Isso ocorria porque
os Ministérios do Interior e da Agricultura conduziam agendas nacionais de-
senvolvimentistas, dando prioridade para os setores econômicos e produtivos.
Ambas apresentavam problemas em relação à autonomia de recursos e ao qua-
dro funcional, inadequado para o atendimento da demanda ambiental do país
(VALLEJO, 2003).
Em 1981, a fim de preservar, melhorar e recuperar a qualidade ambiental,
foi sancionada a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). A PNMA vincu-
la o meio ambiente ao desenvolvimento sustentável, à segurança nacional e à
dignidade da vida humana. A partir da implementação dessa política, houve
uma melhoria
,na estruturação ambiental e, em 1985, foi criado o Ministério do
Desenvolvimento Urbano e do Meio Ambiente. Após a promulgação da nova
Constituição Federal, em 1989, a SEMA, o IBDF e as Superintendências de Pes-
ca (SUDEPE) e da Borracha (SUDHEVEA) foram unificadas em uma única institui-
ção: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) (GODOY & LEUZINGER, 2015; MMA, 2018).
A PNMA estabeleceu a criação do Sistema Nacional do Meio Ambiente
(SISNAMA) e Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), tendo como
consequência o fortalecimento da matéria ambiental sob o ponto de vista da
melhora da estrutura e da legislação. A histórica degradação ambiental aliada à
impunidade, reforçada pelo precário amparo legal até a década de 1980, mo-
tivaram a evolução dos instrumentos jurídicos sólidos para a proteção do meio
ambiente, que se tornou volumosa e vigorou-se no Direito Ambiental (MACE-
DO, 2014; MMA, 2018; BENJAMIN, 1999, 2008).
Já no século XXI, alguns temas ambientais se individualizaram em órgãos
115
específicos. Foi o caso da gestão das águas, das florestas e das UCs, que saíram
da gerência do IBAMA. A partir de 2007, as UCs ficaram sob a responsabilidade
do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), criado em 28 de agosto
de 2007 pela Lei 11.516 (SILVA & SOUZA, 2009; LIMA, 2011). Essa autarquia
federal tem suas atribuições legais delimitadas conforme o parágrafo primeiro,
inciso I da referida lei:
(…) executar ações da política nacional de unidades de conservação da
natureza, referentes às atribuições federais relativas à proposição, im-
plantação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades
de conservação instituídas pela União. (ICMBio, 2018).
O Direito Ambiental se consolidou como ramo do Direito a partir da pro-
mulgação da Constituição Federal de 1988. Esse ramo funciona como interface
entre o direito público e o privado, intervindo nas atividades de particulares para
adequá-las as regras de preservação ambiental dos territórios protegidos. Até
1988, as questões ambientais eram tratadas por outros ramos do Direito e da
ciência conforme tipificações de cada assunto, tendo início no Código Civil de
1916, como propriedade e patrimônio (BENJAMIN, 2008; BORGES et al., 2009).
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, destacam-se im-
portantes políticas nacionais que incidem diretamente sobre as questões am-
bientais. Além da instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conserva-
ção (SNUC), editado pela Lei nº 9.985/2000, outras normas são publicadas com
intuito de conduzir e disciplinar questões ambientais importantes no país. Em
2006, o governo criou a Política Nacional de Populações e Comunidades Tra-
dicionais (PNAP), com o objetivo de executar diretrizes ambientais integradas
entre unidades de conservação, terras indígenas e territórios quilombolas. A
integração desses territórios ao SNUC evidencia a função dessas áreas na con-
servação da biodiversidade e no desenvolvimento nacional, além de promover
o fortalecimento do sistema de Unidades de Conservação (UCs) (MMA, 2018;
BRASIL, 2011).
Em 1992, no Rio de Janeiro, houve a realização da Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (conhecida como Eco 92 ou
Rio 92), evento histórico fundamental para a estruturação ambiental brasileira. O
evento contou com a assinatura da Convenção da Diversidade Biológica (CDB),
um dos mais importantes instrumentos norteadores das políticas nacionais e in-
ternacionais de conservação da biodiversidade, tendo a Convenção das Partes
(COP) como órgão diretivo de gestão e implementação. Os encontros mundiais
de avaliação do cumprimento das diretrizes da CDB, organizados pelo COP, são
realizados de forma periódica pelos países signatários para o estabelecimen-
116
to de compromissos conservacionistas (PEREIRA & SCARDUA, 2008; MILANO,
2012).
AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA NO BRASIL
O SNUC regulamentou o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição
Federal de 1988, que trata o meio ambiente como um bem coletivo e firma o
dever de cada cidadão de protegê-lo. Por essa razão, é necessária a participa-
ção da sociedade através de denúncias e do monitoramento de possíveis crimes
e excessos que degradem o meio ambiente. Juntamente ao SNUC, a Lei de Cri-
mes Ambientais de n.º 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, regulamentada pelo
Decreto nº 6.514 de 2008, é uma ferramenta de cidadania, cabendo a todos os
cidadãos observá-la e implementá-la, por meio de amplo conhecimento e vigi-
lância do meio ambiente (BORGES et al., 2009; MERCADANTE & VIANA, 2015).
A Constituição Federal de 1988 determina que todas as Unidades da Fede-
ração delimitem seus espaços territoriais com atributos naturais a serem espe-
cialmente protegidos. Portanto, a alteração e a supressão em áreas protegidas
só podem ocorrer mediante Lei e autorização prévia do devido órgão ambiental.
A Constituição também veda qualquer utilização que comprometa a integridade
justificada para a criação da UC (BRASIL, 1988; PEREIRA & SACARDUA, 2008).
De acordo com o SNUC, as UCs são espaços territoriais que possuem ca-
racterísticas naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, que
possuem regime especial de administração. Seus limites devem ser claramente
definidos, junto com seus recursos naturais, ao qual se aplicam garantias ade-
quadas de proteção e conservação da natureza. Elas devem possuir, para efici-
ência de sua função, clareza de definição de abrangência dada pela qualidade
documental, espacial e correspondente à realidade local (LIMA et al., 2014).
Em vista disso, as UCs devem respeitar a imutabilidade, no sentido em
que a interferência humana não é permitida, a não ser a que estiver exposta
em seus planos de manejo. Em alguns casos, há uma relativa intocabilidade, de
acordo com categorias extremamente restritivas. A utilização e exploração dos
recursos protegidos pelas unidades, quando permitido, deve ocorrer de modo
sustentável, dentro dos parâmetros que atendam aos requisitos e objetivos para
os quais foram criadas (MEDEIROS, 2006).
Para que uma área assuma o formato jurídico-ecológico de uma UC, deve
atender os requisitos indicados em lei, como: sua relevância natural e o objeto
de conservação, seu grau de ameaça e a prioridade de conservação, o caráter
oficial, a delimitação geográfica e o regime especial de proteção e administra-
117
ção (LOPES & VIALÔGO, 2013; PEREIRA & SCARDUA, 2008). Dentre as inú-
meras funções de uma UC, destacam-se a defesa de amostras da diversidade
evolutiva das espécies — em níveis adequados para aproveitamento público, a
pesquisa científica e o uso sustentável dos recursos naturais.
As categorias de UCs de Proteção integral são: Estação Ecológica (ESEC),
Monumento Natural (MONA), Parque Nacional (PARNA), Reserva Biológica (RE-
BIO) e Refúgio de Vida Silvestre (REVIS). As categorias de UCs de Uso Sustentá-
vel são: Área de Proteção Ambiental (APA), Área de Relevante Interesse Ecoló-
gico (ARIE), Reserva de Fauna (REFAU), Floresta Nacional (FLONA), Reserva de
Desenvolvimento Sustentável (RDS), Reserva Extrativista (RESEX) e Reservas Par-
ticulares de Patrimônio Natural (RPPNs) (BRASIL, 2000; AGUIAR, 2013; FRAN-
CO, et al., 2015).
Nesse contexto, o limite territorial de uma Unidade de Conservação (UC)
é o elemento concreto de referência onde o Estado deve atuar. Os limites das
UCs representam uma barreira administrativa e física para supressões, pressões
e ameaças internas e externas, em que pese a infinidade de conflitos que tal
processo já tenha causado. Assim, o Estado brasileiro atua para a conservação
e/ou preservação ambiental. O estabelecimento de distintas tipologias e cate-
gorias de UCs para a gestão ambiental tem o intuito de garantir a preservação e
a relativa intocabilidade de algumas áreas, assim como a conservação por meio
da utilização controlada dos recursos naturais em áreas específicas
,(MEDEIROS,
2006; MEDEIROS & YOUNG, 2011; BENJAMIN, 1999).
De acordo com MEDEIROS (2006), “Unidade de Conservação” é uma das
tipologias previstas no modelo ambiental brasileiro. Ela está situada dentro de
um grupo mais abrangente denominado áreas protegidas. As categorias se in-
dividualizam de acordo com a forma e uso dos recursos naturais nelas existentes
ou pela necessidade de resguardar parcelas de biomas, ecossistemas e biodi-
versidade rara ou ameaçada de extinção, com avaliação dos graus de vulnerabi-
lidade e pressão.
Atualmente, não se concebe mais a conservação ambiental dos espaços
protegidos livre da interferência humana. Por isso, as políticas públicas ambien-
tais desenvolvem cada vez mais instrumentos de promoção de gestão partici-
pativa (BENSUSAN, 2006; ABREU & PINHEIRO, 2012). Isso se demonstra na
própria lei do SNUC, a qual afirma que, para qualquer implementação de UCs,
deve haver consulta pública (com poucas exceções).
A inserção da instância social nos processos de conservação é um modo
de romper com a falsa ideia de que as UCs são empecilhos para o desenvolvi-
mento do país. No caso das áreas com comunidades tradicionais, alternativas
econômicas sustentáveis orientadas por planos de utilização e de manejo têm
alcançado grande visibilidade. Nacional e internacionalmente, há o estabeleci-
118
mento de um mercado valioso para a venda de produtos florestais explorados
de forma sustentável.
Desse modo, o desenvolvimento sustentável e a gestão participativa têm
sido importantes ações, principalmente quanto a melhoria da qualidade de vida
das populações tradicionais e das que vivem no entorno das UCs, favorecendo
também a proteção dos seus territórios (ALONSO, et al. 2007; DELGADO et al.
2007; MILANI, 2008; MENDONÇA & TALBOT, 2014).
De acordo com MEDEIROS & YOUNG (2011), as UCs têm sido conside-
radas bons mecanismos de conservação e justiça social. As políticas públicas
inclusivas tendem a promover o consumo de serviços e produtos provindos do
desenvolvimento sustentável, pois são atraentes e geram recursos para a socie-
dade e para as próprias UCs. Como resultado, essas políticas públicas tendem
a ser um fator para o desenvolvimento local e regional. Em muitos parques bra-
sileiros, há o oferecimento de serviços recreativos como trilha, parques de lazer,
apreciação de belezas cênicas e outras atividades que acabam gerando empre-
go e renda para as comunidades em seu entorno.
Gradativamente, o conceito de biodiversidade passa a ser concebido
como o produto histórico da interação entre o social e o ambiental (FRANCO,
2013). Ao mesmo tempo, abandona-se a ideia de natureza intocada em prol da
sustentabilidade ambiental e, a partir disso, o conceito natureza se mostra mais
maduro. O humano é considerado parte integrante e necessária da natureza
para a compreensão dos processos ecológicos das paisagens em sua totalidade,
além de ser responsável por recuperar áreas degradadas e espécies em extin-
ção.
Atualmente, verifica-se a presença humana na maior parte das UCs, mes-
mo naquelas restritivas à presença humana. Por isso, a construção de políticas
que reconheçam essa problemática e direcionem soluções para a sociedade e
para o meio ambiente pode ser a alternativa mais adequada (SILVA, 2008).
As UCs surgiram com o propósito de manter a sobrevivência dos espa-
ços naturais. Em outras palavras, as UCs devem garantir que os processos de
reprodução e evolução biológica ocorram, além de garantir a manutenção da
biodiversidade, com o menor grau de interferência humana possível. À medida
que os atos normativos se expandem, surgem novas categorias de áreas que
atendem peculiaridades ambientais diversas, para controle de situações especí-
ficas, para regulamentação do uso de recursos naturais e para novas formas de
utilização sustentável das florestas, de modo a evitar sua escassez e degradação
ambiental (BENJAMIN, 1999, 2008; THOMAS & FOLETO, 2012).
Assim, o estabelecimento de áreas protegidas reguladas com base em só-
lidas delimitações e com o conhecimento da abrangência territorial, assim como
a determinação de regras legais para uso e acesso aos sistemas naturais, têm
119
se tornado estratégia importante para a preservação da biodiversidade in situ a
nível mundial.
As UCs são importantes reservatórios de água e alimento para a socieda-
de. Elas também atuam no controle de doenças e na regulação do clima, além
de serem fontes de inspiração e usos diversos, inclusive de lazer. Por serem
espaços com dinâmicas específicas e administração diferenciada, são um inte-
ressante regulador e ordenador do território sob a tutela e gestão do Estado
brasileiro (PRATES & IRVING, 2015; LEUZINGER, 2007; TRAJANO, 2010).
Diante do exposto, nota-se que as UCs possuem características relaciona-
das aos contextos regionais onde estão inseridas, o que pode afetar a definição
de categorias, extensão, número de áreas etc. Diante disso, ao analisar uma uni-
dade de conservação, recomenda-se fazer uma contextualização com o período
de criação, para que haja compreensão da estrutura administrativa e política
vigente, assim como averiguar o contexto regional e aspetos tecnológicos e ju-
rídicos envolvidos.
Destaca-se acontecimentos relacionados ao meio ambiente que antece-
deram picos de criações de UCs: a hom*ologação da Constituição Federal de
1988; a assinatura da CDB em 1992-1993; a assinatura do Protocolo de Kyoto
em 1997; a ratificação do SNUC em 2000; a implementação da Política de Áreas
Prioritárias para Conservação, Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios
da Biodiversidade (APCB); a hom*ologação de normas de apoio ao SNUC em
2003-2004; a edição do Plano Nacional de Áreas Protegidas (PNAP) em 2006;
e a Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-10), em que se definiram as
Metas de Aichi (Figura 02).
Figura 02: Evolução temporal da criação de novas UC’s no Brasil (1937-2021)
Fonte: Adaptado de Barbosa, 2021 e atualizado até o ano de 2021
120
AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E OS BIOMAS
BRASILEIROS
Até o mês de fevereiro de 2018, as UCs federais geridas pelo ICMBio so-
mavam 324 áreas, divididas em dez categorias e ocupando cerca de 794 mil
km2. Essa área representa mais de 9% da extensão do território nacional, ex-
cluindo-se a área marítima. Embora constem 12 categorias no SNUC, ainda não
existem UCs na categoria Refúgio de Fauna. Ademais, as Reservas Particulares
de Patrimônio Natural não foram consideradas neste trabalho, por terem regime
de gestão privada.
Dessas 324 UCs contabilizadas, 147 pertencem a categoria de Proteção
Integral, com aproximadamente 385,9 mil km². Já as outras 177 são de uso sus-
tentável, com extensão aproximada de 407,7 mil km². A tabela XX e a figura XX
demonstram a quantidade e a área das UCs de acordo com cada bioma.
Tabela 01: Quantidade e área das Unidades de Conservação da Natureza por bioma no Brasil
Bioma Nº de Ucs Área (mil km2)
AMAZÔNIA 128 636
MATA ATLÂNTICA 102 42
CERRADO 47 68
CAATINGA 23 32
MARINHO COSTEI-
RO 19 10
PAMPA 3 4
PANTANAL 2 1
Total Geral 324* 794
Fonte: ICMBIO (2018) *Este valor não contabilizou as RPPN’s.
121
Figura 03: Distri-
buição espacial das
Unidades de Con-
servação da Nature-
za (Federais).
Fonte: Elaboração dos
autores
A tabela 01 e
a figura 03 regis-
tram as discrepân-
cias regionais no
número de UCs.
Esse é um elemen-
to relevante, pois
indica quais são as
prioridades no que
concerne a conser-
vação dos recursos
naturais, através
das políticas públi-
cas de delimitação
territorial por fragmentos (UCs). Esses fragmentos são testemunhos do processo
de evolução das paisagens originárias para as paisagens antropogênicas, no
qual, notoriamente, julgamentos subjetivos de valores acabam por induzir polí-
ticas públicas territoriais.
A Amazônia é um dos biomas mais importantes do mundo e, também,
o maior bioma brasileiro. No contexto atual, é factível entender que a maior
parte das UCs criadas nesse bioma
,foram propostas a fim de conter os avanços
dos processos de degradação ambiental, principalmente do desmatamento. A
interface entre UCs e outras áreas protegidas relevantes, como as Terras Indíge-
nas, formam uma barreira necessária e importante ao avanço do agronegócio.
No entanto, a paisagem amazônica está cada vez mais atrelada à destruição
pelo garimpo ilegal, pela grilarem e pelas queimadas ilegais. Ressalta-se que
a Amazônia foi um dos últimos domínios originários a serem modificados pela
humanidade, visto que sua alteração teve início, de forma mais intensa, a partir
de meados de 1960.
No tangente à Mata Atlântica, seu elevado número de UCs, o segundo
122
maior do país, pode ser atribuído a uma resposta tardia ao elevado grau de frag-
mentação do bioma — vide Lei da Mata Atlântica, n° 11.428 de 2006. O nível de
degradação ambiental foi ocasionado, principalmente, pelo processo intenso
de ocupação costeira do território brasileiro, onde encontra-se a maior parte do
bioma, e pela superexploração do Pau-Brasil. Se comparada ao bioma Cerrado,
também considerado um hotspot, a Mata Atlântica, ainda que menor em exten-
são, possui mais que o dobro de UCs daquele. Do ponto de vista antropogênico,
a paisagem atual da Mata Atlântica é fortemente marcada pelo complexo mode-
lo de urbanização e seus desencadeamentos.
Nas últimas décadas, o bioma Cerrado passou por grandes transforma-
ções. A primeira transformação notória se deu por um intenso processo de ocu-
pação territorial, devido a interiorização do Brasil a partir da construção de Bra-
sília. Posteriormente, o Cerrado teve como eixo central a expansão desmedida
do agronegócio, principalmente após a possibilidade do plantio de soja. A
partir disso, o cuidado com os recursos naturais disponíveis na paisagem origi-
nária foi atropelado, contribuindo de forma intensa para a construção de uma
paisagem antropogênica.
Atualmente, a paisagem do Cerrado é marcada pela geometria dos plantios
nos vastos chapadões do relevo, que possuem solos de elevada predisposição a
processos erosivos, contribuindo para os processos de assoreamento dos cursos
d’água nas cabeceiras de drenagem de importantes bacias hidrográficas, como:
Bacia do Rio da Prata, Bacia Tocantins-Araguaia, Bacia do Paraguai e Bacia do
Rio São Francisco.
A Caatinga, como o Cerrado e o Pampa, foi vítima da ilusão de que pos-
suía uma suposta hom*ogeneidade ambiental, fortalecendo as investidas para o
declínio de sua qualidade ambiental. Como resultado, é o bioma mais degrada-
do do Brasil (Leal et al., 2005). No caso da Caatinga, a pecuária extensiva, a alta
densidade populacional, o crescimento industrial e o desmatamento (Ribeiro
et al., 2015), juntamente com variáveis paleo-ecológicas e sistemas climáticos
semiáridos, foram os principais agentes de alteração de uma paisagem antró-
pica. A Caatinga já pode ser considerada uma das fronteiras remanescentes do
agronegócio, que atua na região — ainda que cautelosamente —, por meio da
irrigação, devido ao seu solo fértil para a agricultura. O contraponto é que a
irrigação pode causar a salinização do solo e o manejo impróprio pode causar
desertificação, tornando a paisagem ainda mais antropogênica.
No Pantanal, apenas duas UCs Federais foram criadas nesse período de
80 anos. Caracterizado como bioma pelo MMA e IBGE, é importante ressaltar
que, foi precisamente analisado por Ab’Sáber (2003) e definido como uma pai-
sagem de exceção. De acordo com o autor, a paisagem se apresenta pautada
pela fisiografia das áreas alagadas: é possível que o Pantanal seja, em essência,
123
uma paisagem hídrica. O complexo sistema hidrogeomorfológico dessa paisa-
gem foi colocado a mercê de um modelo que mescla dinâmicas agropastoris
— das mais rudimentares até sistemas de silvicultura moderna mecanizada. Por
sua vez, esse tipo de dinâmica levou o bioma a uma condição de elevada vulne-
rabilidade, especialmente pela fluidez hidrológica peculiar aos baixios planície
pantaneira. As queimadas mais recentes demonstram a fragilidade do sistema
e sua paisagem levará anos para se estabelecer novamente, firmando-se como
uma paisagem antropogênica.
O bioma Pampa sucede o Pantanal quanta a criação de UCs: apenas três
foram criadas nesse período. Ao observar o bioma, percebe-se uma marcante
paisagem antropogênica, resultado do modelo globalizado de apropriação dos
territórios via políticas pautadas pelo capital. Para lucrar, foi necessário implan-
tar processos mono-produtivos, como a pecuária, a soja, o arroz, a indústria de
celulose, a silvicultura e a mineração. Alguns rios dessa paisagem altamente
antropogênica sofrem uma demanda irreal de água, principalmente nos meses
de irrigação do arroz (Calhman, 2008). Como uma paisagem que também pos-
sui alta densidade demográfica, há o derramamento de esgoto em seus rios e a
contaminação por fertilizantes e pesticidas, advinda da agroindústria atuante na
região (Abreu et al., 2019).
Embora fontes difusas causem grandes impactos ao meio ambiente, os
processos desencadeadores de transformação das paisagens originárias podem
ser mensurados. Os resultados desse tipo de mensuração não apontam somen-
te para uma série histórica ou um conjunto de dados numéricos situados no tem-
po, mas também para um resultado significativo, capaz de realizar diagnósticos
e, por fim, subsidiar prognósticos. Ainda que recente, um esforço significativo
tem sido conduzido pelo Projeto MapBiomas: uma rede colaborativa de ela-
boração dos processos gerais de transformações de usos da terra nos biomas
brasileiros. A tabela 02 indica os percentuais de remanescentes de vegetação
nativa por bioma:
124
Tabela 02: Percentual de cobertura da vegetação nativa por Bioma (1985-2020)
Bioma Cobertura da vegetação nativa (%)
Amazônia 82,1
Caatinga 63
Cerrado 54,4
Mata Atlântica 29
Pantanal 83,8
Pampa 46
Fonte: MapBiomas (2021).
A análise desses dados exige uma série de cuidados, um deles é o modo
de observar os números. Uma análise simplista, meramente pautada no valor
percentual, conduziria a equívocos clássicos. Nos casos mais emblemáticos,
como o da Amazônia e do Pantanal, os altos números de cobertura de vege-
tação nativa — 82,1% e 83,8%, respectivamente — são utilizado pelo setor do
capital produtivo como argumento para o avanço dos processos de desmata-
mento, pautados num discurso desenvolvimentista.
Esse tipo de argumento é extremamente lesivo e falacioso, já que o des-
matamento gera perdas irreversíveis para o meio ambiente e impactos na eco-
nomia do país. Hoje, é possível afirmar que o desmatamento da Amazônia (ain-
da com uma elevada porcentagem de cobertura vegetal nativa) fez com que o
bioma se tornasse uma fonte de dióxido de carbono, antes um sumidouro de
carbono (Gatti et al., 2020; Denning, 2021). No contexto das mudanças climáti-
cas, qual é o valor do desmatamento para a economia mundial?
Partindo da análise dos percentuais remanescentes da vegetação nativa,
a observação passa por outra perspectiva. Mesmo os valores baixos de inter-
venção antrópica podem desencadear processos significativos na dinâmica dos
sistemas, até mesmo catastróficos para os ecossistemas. Isso ocorre devido aos
seus diferentes graus de fragilidade e, por isso, sistemas sensíveis como o Pan-
tanal exigem o mínimo possível de perturbação.
Indo além dos valores da série histórica do uso das terras, outros elemen-
tos devem ser considerados. Por exemplo: a velocidade dos processos desen-
cadeados pelas ações antrópicas. Nesse âmbito, é indiscutível que a velocidade
ganhou força pela indução dos processos industriais e tecnológicos, o qual se
tornaram cada vez mais intensos. É essa capacidade de velocidade e intensida-
de que atribui uma das principais características do Antropoceno.
Há um problema intrínseco às UCs, que persiste desde os primeiros par-
ques criados. Ao analisar as Unidades de Conservação da Natureza e associá-las
125
aos processos de transformações
,da paisagem, é possível verificar que as UCs
são representações consolidadas de um modelo de fragmentação. Isto é, as so-
ciedades modernas as criaram, mas ao mesmo tempo, afastaram-se da natureza
e a tornaram um mero objeto de contemplação. Ao redor das UCs, em que pese
as zonas de amortecimento, há um nível de degradação ambiental que cerca
e sufoca as unidades conservadas. Obviamente, as UCs se mantém como uma
área de certa qualidade ambiental, mas deve-se olhar o meio ambiente como
um sistema. Não é possível que certas áreas se mantenham com qualidade am-
biental se todo o restante está sendo devastado. Não é possível esperar que
uma unidade de conservação mantenha a conservação se todo o restante do
sistema está em colapso.
A fragmentação das unidades de conservação possui diversas faces: a pre-
cariedade de fundamentos que originam a maioria dessas áreas; a imensa gama
de conflitos socio-territoriais desencadeados; os crimes ambientais que ainda
ocorrem; a precária atuação do Estado na manutenção e gerenciamento des-
sas áreas; a ausência de articulação entre os instrumentos legais – todos esses
problemas demonstram que as UCs se perderam em ideais de fragmentação e
descaso para com o meio ambiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao direcionar o olhar para o que representam as unidades de conservação,
é possível perceber a evolução da paisagem e seus conceitos. As UCs, como nú-
cleos amostrais do processo geohistórico da dinâmica da paisagem, revelam as
valências e as limitações dos modelos de apropriação territorial, especialmente
após a revolução industrial.
Torna-se possível observar que as UCs são consideradas resquícios desgas-
tados da paisagem originária, pois se refere a um período inferior a um século
(1937-2018) que, portanto, sofreu com a revolução antrópica. Ainda assim, é
possível encontrar elementos da paisagem originária nas UCs, principalmente
ao considerar que o Brasil passou por uma revolução industrial tardia.
Ainda que sejam os melhores exemplares das paisagens originárias, as UCs
foram bastante alteradas. Seguramente, ao buscar as marcas do processo an-
tropogênico nos domínios das UCs, depara-se com uma série de elementos
abióticos e bióticos que não deixam dúvidas quanto ao peso da intervenção
humana, seja pela degradação direta ou indireta, seja pelo próprio modelo de
conservação induzido pelo plano de manejo. Ainda assim, a sociedade alça as
UCs como ícones de uma suposta natureza intocada, capaz de remeter ao que
126
seria, então, um ambiente original.
Por fim, é essencial que haja uma mudança profunda no entendimento do
que seja uma unidade de conservação. Para isso, é necessário que surja uma
nova forma de ver o meio ambiente, na qual ele não seja visto apenas como
unidades territoriais desconectadas do todo, mas parte de um sistema global.
O meio ambiente interfere na sociedade, assim como a sociedade interfere, de
forma muito contundente e mais intensa, no meio ambiente. Enquanto não hou-
ver equilíbrio entre humanidade e meio ambiente, o sistema, como conhecemos
hoje, está fadado ao colapso.
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Não há um consenso absoluto sobre quando exatamente o homem começou a interagir com a paisagem, nesse conceito, contudo, há consenso de que o homem atualmente é o principal agente influenciador e transformador da paisagem. Devido a essa importância, o homem é tido, por uma linha teórica, como elemento intrín- seco da paisagem. Contudo, por ter sido cristalizada genericamente como uma unidade essencialmente visual, a paisagem demanda considerar a lente ou o filtro do observador. A paisagem sempre exige distanciamento para sua observa- ção e essa concepção leva Pivello e Metzger (2001) e, ainda, Cittadin et al (2010) a afirmar que a paisagem é o lugar onde não estamos (pois observa- mos), podendo, até mesmo, ser um pano de fundo. No entanto, cabe aqui uma primeira discordância com os autores, pois por motivações sociais, culturais, antropológicas, filosóficas entre outras esse processo abrupto de distanciamento é algo extremamente subjetivo e irá desencadear análises fragmentadas de um sistema complexo como a paisagem. Dessa forma, se a paisagem está relacionada ao entendimento da complexidade dos agentes presentes, direta e indiretamente, com o que se convencionou como paisagem, passando por questões como a própria percepção do espaço, o patrimônio natural está relacionado ao senso de valoração atribuído a esse espaço. 132 Portanto, a humanidade exerce de modo contínuo e simultâneo inú- meras funções nesse arranjo (geo)sistêmico, desde indutora da apropriação até observadora. Como agente observador, o homem vê a paisagem, e como ator, afere julgamento atribuindo um valor (ainda não monetário), tor- nando a paisagem, por vezes, um ente alheio a si mesmo. Como ator tam- bém, após julgamento, ele toma decisões e executa ações para interagir, transformar e/ou influenciar a dinâmica daquilo que podemos denominar paisagem original (anterior ao antropoceno). Nessa primeira perspectiva, a paisagem original (natural) pode ser considerada como parte da natureza herdada e percebida pelo hom*o-sapiens, e o patrimônio natural, a natureza (paisagem original) valorada pelo homem. Assim, o conceito de Patrimônio Natural, relacionado ao sentido de Valor Universal Excepcional estabelecido pela UNESCO, depende forte- mente de critérios muito rigorosos para delimitar o conceito de paisagem. Delinear o conceito de paisagem original (natural) possibilita a classificação do bem/patrimônio, facilitando o seu enquadramento como natural e o pla- nejamento e gestão de suas áreas, que normalmente se apresentam como suscetíveis a fragilidades, para a elaboração de políticas em normas de pro- teção ambiental (UNESCO, 1980; SCIFONI, 2003; 2006; 2008; TREVISAN, 2016; UNESCO, 2017; 2020). PAISAGEM: UMA HISTÓRIA SOBRE PERCEPÇÃO A noção de paisagem, especialmente pelo viés da natureza, acompa- nha a existência humana desde as primeiras interações do antrópico com a paisagem originária, uma vez que a sobrevivência da espécie humana sempre dependeu dessa relação. Entretanto, a formulação de conceitos de paisagem começa a se manifestar mais claramente a partir das observações de pintores, artistas e poetas, tanto no Oriente quanto no Ocidente (MAXI- MIANO, 2004). Os primeiros indícios acerca da paisagem ocorrem nas descrições do mundo até então conhecido através de suas representações, com mani- festações de dimensionamento e localização, especialmente elaborados pela Matemática, Geometria e Cartografia (CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002). Os registros mais antigos da observação da paisagem pelo homem são as pinturas rupestres da França e do norte da Espanha, que datam entre 30 mil e 10 mil a. C. 133 A observação da paisagem fornecia importante conteúdo a respeito dos ciclos da natureza, principalmente os relacionados à agricultura, com regimes de cheias dos rios e os períodos lunares. A apreensão da paisa- gem estava relacionada a possibilidade de produção, que através dela se manifestava, assumindo a observação, finalidade da análise e não da visu- alidade puramente estética. A partir disso, surge a ideia do jardim como possibilidade de transformar o cenário natural em cenário construído (an- tropizado), uma paisagem artificial, na qual as condições de sobrevivência são asseguradas pela repetição dos ciclos observados na natureza (LEITE, 2006; CASADO, 2010). Ainda sobre a construção de jardins a partir da observação da nature- za, essa também fornecia uma sensação de proteção aos temores naturais e antrópicos impostos pela paisagem primitiva. Nesse período, a natureza era entendida como um ambiente hostil e obscuro com o qual era preciso cautela. (CASADO, 2010). A paisagem se apresentava sob perspectivas diferentes entre o mundo ocidental e o mundo oriental. Na sociedade oriental, principalmente no Oriente Médio, destacavam-se os jardins das antigas civilizações da Meso- potâmia, Egito e Pérsia, os quais eram ornados com água e em conjunto com pavilhões e celeiros, cercados por muros que protegiam de ameaças externas. Eram complexos residenciais rodeados por muros onde fazia-se o aproveitamento seletivo de elementos da paisagem nas construções, tra- zendo-os para locais com mais segurança física. Destaca-se, nessa região, os Jardins Suspensos da Babilônia, que são considerados uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, apresentando cerca de duzentos e cinquenta espécies diferentes de vegetais e grandes técnicas de irrigação e drenagem (MAXIMIANO, 2004; SANTOS & NUCCI, 2009; NUNES, 2010; AFONSO, 2017). Por outra perspectiva, no Extremo Oriente, valorizava-se parques, tan- ques e viveiros de pássaros, que expressavam o conceito de paisagem. Os jardins eram como miniaturas do Universo, com montes e água. Eram con- cebidos para proporcionar paz, conforto espiritual e contato com a nature- za. Os jardins hindus e budistas da Índia desapareceram, restando apenas os jardins construídos sob influência islâmica. Na China, há relatos de parques construídos por volta de 230 a.C., período de formação da China Imperial. Esses jardins valorizavam o mundo natural e os aspectos sagrados que buscavam recriar a paisagem natural, e influenciaram fortemente os jardins japoneses. Tanto na China quanto no Japão, destacava-se o cosmocentrismo, que via a natureza como sistema vivo o qual o homem faz parte. Apresentava percepção da relação ame- 134 na entre pessoas e paisagem que fundamentou a filosofia e o pensamen- tos chineses. Atribuía espírito a natureza e seus elementos. (MAXIMIANO, 2004; SANTOS & NUCCI, 2009; CASADO, 2010; AFONSO, 2017). Nesse sentido, a percepção do homem sobre a natureza lhe traz o conceito de paisagem, ainda que instintivo, e o impulsiona a criar réplicas produtivas desse ambiente que permitem interações seguras. Desde sua origem, a noção de paisagem está fortemente ligada a ques- tão espacial (FIGUERÓ, 1997). Além disso, a distribuição dos fenômenos e os deslocamentos humanos pelo território que resultaram nos primeiros esboços gráficos de representação da paisagem foi preocupação desde os primórdios da humanidade (FERREIRA & SIMÕES, 1986). Originalmente, a palavra paisagem indica uma conexão com a deriva- ção etimológica de palavras inglesas com raízes germânicas – landskipe ou landscaef. Essas palavras e suas noções implícitas remontam a 500 d.C., quando os colonos anglo-saxões a levaram para a Grã-Bretanha para se referirem a uma clareira na floresta com animais, cabanas, campo e cer- cas, isto é, essencialmente uma paisagem camponesa (JACKSON, 1984; TAYLOR, 2008). Em línguas latinas, ela deriva de pagus, que significa país, com o sentido de espaço territorial, lugar (JACKSON, 1984; BOLÓS, 1992; SCAZZOSI, 2004; TAYLOR, 2008; COSGROOVE, 1985; CARVALHO; CAVIC- CHIOLLI; CUNHA, 2002;SANDEVILLE JUNIOR, 2005). A concepção ocidental foi cunhada pela intensificação dos contatos com o Oriente. As longas viagens por terra e por mar, facilitadas pelos avanços nas técnicas de navegação, favoreceram o incremento das relações comerciais e as trocas culturais, com os hábitos asiáticos influenciando os jardins europeus, principalmente os jardins ingleses. (AFONSO, 2017). Esse processo de intervenção humana, com a pretensão de “organizar a natureza”, ficou conhecida como a arte dos jardins e durou até quase o século XIX; identificada principalmente como a representação grá- fica da paisagem e posteriormente como paisagismo. Havia uma noção co- letiva de paisagem devido ao aumento e rapidez da circulação de pessoas, da instituição de colônias, da imprensa e da fotografia entre outros (KEMAL & GASKELL, 1995; MAXIMIANO, 2004, GRÖNING, 2004; AFONSO 2017). Na Idade Média, a paisagem se resumia numa representação pictórica que insistia em não representar um lugar real, observado a partir de deter- minada perspectiva como algo idealizado. Foi no final desse período que a finalidade estética da paisagem vinculada a emoções e afetos ganhou força. (COSGROVE, 1985; BOLÓS, 1992; CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002; VITTE, 2007; RISSO, 2008; ÁVILA et al., 2019). No período do Romantismo, surgiu na Alemanha o primeiro termo 135 mais robusto e específico para designar paisagem, com a palavra lands- chaft. Contudo, essa expressão era utilizada desde a Idade Média para representar uma região média onde se desenvolviam pequenas unidades de ocupação humana e somente mais tarde, no período do Iluminismo, o termo assimilou sentido semântico com a noção de quadro, arte ou/e natureza (HARTSHORNE, 1939; ROUGERIE & BEROUTCHACHVILLI, 1991; FIGUEIRÓ, 1997; SCHIER, 2003; MAXIMIANO, 2004; BESSE, 2000; FROLO- VA, 2007; ABREU, 2017; FERNANDES & TORRES, 2020). Ao final da Idade Média o receio da grande natureza (o Todo) e o co- nhecimento do homem restrito à sua circunvizinhança, presentes nos perí- odos primitivo e medieval, deram lugar, no Renascimento, aos desbrava- mentos dos territórios, e à ampliação da esfera do conhecimento científico (LEITE, 2006; CASADO, 2010). No período do Renascimento ocorreu, então, uma ressignificação dos jardins, que passaram a representar os sinais divinos que o homem era cha- mado a interpretar (CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002). De acordo com Figueiró (1997), nesse período o jardim foi incorporado como instru- mento da ordenação urbana e a pintura assumiu a expressão da represen- tação simbólica da paisagem como um lugar idealizado, o que denota a atribuição do valor ‘cultural’ ao termo (CASADO, 2010). Ainda durante o período renascentista, surgiu na França o termo pay- sage que trazia um sentido próximo ao de landschaft e considerava os arre- dores com uma conotação espacial delimitada e delimitante (HARTSHOR- NE, 1939; SCHIER, 2003; MAXIMIANO, 2004, SCAZZOSI, 2004; FROLOVA, 2007). Segundo Cosgrove (1985), a paisagem era “um modo de ver”, as- sociado às transformações econômicas, sociais, políticas, técnicas e artísti- cas do século XVI e do início do século XVII (COSGROVE, 1985; CORREA, 2011). No século XVI o termo foi associado a estética, aliando aspectos na- turais a representação artística da paisagem. Os jardins franceses da Idade Média expressavam uma nova concepção de ordem, com marcas de uni- dade e grandeza, simetria e uma organização em torno de um eixo prin- cipal. Do centro para o exterior, ficavam as naturezas civilizada, rústica e selvagem. Não havia muros e não se reunia os elementos de uma paisagem (MAXIMIANO, 2004; SANTOS & NUCCI, 2009; AFONSO, 2017). Na Inglaterra, destacavam-se as paisagens campestres, delimitadas por muros e vários componentes paisagísticos. Essa dinâmica deu origem ao planejamento da paisagem – landscape planning (MAXIMIANO, 2004; SANTOS & NUCCI, 2009; AFONSO, 2017). A reinterpretação do conceito de paisagem nos séculos XV e XVI, oriun- 136 das das mudanças nas condições históricas, levou o homem a repensar a sua relação com o entorno (FIGUEIRÓ, 1997; CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002). Os estudos de Aliata & Silvestri (1994), Figueiró (1997) e Carvalho, Ca- vicchiolli e Cunha (2002) afirmam que o caminho do racionalismo forçou a substituição da paisagem idealizada pela paisagem concreta. Segundo Fi- gueiró (1997), a ideia de paisagem nesse período se afirmou como mosaico de elementos, naturais e não-naturais, passíveis de serem captados pelos sentidos humanos em um determinado momento, a partir de um determi- nado local. Assim, a componente espacial-territorial se perdeu progressivamente e só seria resgatada novamente pela escola alemã através da Naturphilo- sophie, uma visão holística integradora, que não reconhece divisões entre arte, ciência, religião, público e privado. Foram as mudanças ocasionadas pelo racionalismo Cartesiano, no iní- cio do séc. XVII, que fizeram com que a paisagem aos poucos perdesse o senso estético e passasse a ser mais identificada com o conceito de natu- reza. Isso se deu através dos desdobramentos conceituais, dentre eles: o todo como resultado do comportamento das partes e uma metodologia hierárquica que consistia em dividir o objeto em tantas partes necessárias, ordenando-as posteriormente de forma hierárquica e analisando-as uma a uma (FIGUEIRÓ, 1997; CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002). Foi Alexander von Humboldt quem difundiu o estudo e a noção de paisagem. Esse importante naturalista, por viver entre a intelectualidade artística e literária, considerava que o caráter fundamental de uma paisa- gem deriva da simultaneidade de ideias e sentimentos que são suscitados no observador, e que o poder da natureza se manifesta na conexão de im- pressões, e na unidade de emoções e sentimentos que se produzem nes- se observador (HUMBOLDT, 1950, 1997; BUNKSE, 1981; FIGUEIRÓ, 1997; CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002; KWA, 2005; SANTOS & NUC- CI, 2009; VITTE & SILVEIRA, 2010). Contudo, por influência de Goethe, enfatizou-se a predileção pela ob- servação da morfologia vegetal, assumindo um caráter fortemente naturali- zante (FIGUEIRÓ, 1997; CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002; KWA, 2005; VITTE & SILVEIRA, 2010). Humboldt associava elementos diversos da natureza e da ação humana, sistematizando, assim, uma das bases episte- mológicas da ciência geográfica (BRITO & FERREIRA, 2011; SCHIER, 2003). Seguindo a linha de pensamento iniciada por Humboldt, seus segui- dores, como, por exemplo, Siegfried Passarge, iniciaram, no final do século XIX, uma análise da paisagem sob o ponto de vista estrutural, apresentando 137 uma tentativa de compreensão dessa a partir de escalas hierárquicas. Pas- sarge contribuiu com a primeira obra que se dedica ao estudo exclusivo das paisagens: “Fundamentos da ciência da paisagem” (AHLMAN et al., 1920; RISSO, 2008; SILVEIRA, 2009; SANTOS & NUCCI, 2009; ABREU, 2017). No final do século XIX, as conceituações de origem darwinistas (a partir dos estudos da evolução das espécies de Charles Darwin) começaram a in- fluenciar especialmente os biólogos soviéticos. Andrei Krasnov, um geógra- fo e botânico russo, influenciado pelo conceito ecossistêmico, elaborou o conceito de paisagem natural, o que desencadearia na formulação das ba- ses conceituais das abordagens geossistêmicas, no século XX (CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002). Krasnov desenvolveu estudos relacionais das combinações naturais ou dos complexos geográficos, cuja formação resulta das correlações especificas dos climas, dos relevos, dos processos geodinâmicos e das vegetações (paisagem) (FROLOVA, 2007, 2019; SHAW & OLDFIELD, 2007). No final do século XIX, as ideias de Friedrich Ratzel foram assimiladas pela Landschaftskunde, uma ciência das paisagens, considerada sob a óti- ca territorial, ou seja, uma expressão espacial das estruturas da natureza, organizadas por leis cientificamente observáveis (SCHIER, 2003; MAXIMIA- NO, 2004; BARBOSA & GONÇALVES, 2014; SANTOS & PINTO, 2019). Rat- zel descreveu uma dialética entre os elementos fixos da paisagem natural como o solo, os rios etc., e os elementos móveis, em geral antrópicos, e, as- sim, demonstrou que paisagem é o resultado do distanciamento do espírito humano do seu meio natural. Esse distanciamento iniciou um processo de libertação cultural do meio natural. Ratzel também utilizou o termo “geo- grafia cultural” pela primeira vez ao escrever sobre a geografia dos Estados Unidos com ênfase econômica (SCHIER, 2003). No final dos anos 1930, o biogeógrafo alemão Karl Troll propôs a cria- ção da ciência Geoecologia da Paisagem, centralizada nos estudos dos as- pectos espaço-funcionais (TROLL, 1950, 1970; SCHREIBER, 1990; RODRI- GUES et al., 2007; RIBAS & GONTIJO, 2015; SOUZA, 2018). Em 1939, Troll cunhou e definiu o termo ecologia da paisagem, que tra- ta especificamente das interrelações complexas entre os organismos, ou as biocenoses, e os fatores, estudando o manejo integral como ecossistema. A perspectiva de Troll incluía, além de paisagens naturais, as paisagens antró- picas. Essa perspectiva postulava que as paisagens culturais e os aspectos socioeconômicos deveriam também ser considerados nas análises dos fato- res componentes da superfície terrestre (TROLL, 1950; ZONNEVELD, 1990; SHAW & OLDFIELD, 2007; VALE, 2012). O interesse pelo estudo da paisagem teve aumento e alcançou uma se- 138 ção especifica no Congresso Internacional Geográfico, em Varsóvia (1934) e Amsterdã (1938) (CARVALHO; CAVICCHIOLLI; CUNHA, 2002). Em Ams- terdã, reconheceu-se a necessidade de uma definição clara do que fosse paisagem, para tratar do conflito entre as abordagens objetiva e subjetiva, já que estava evidente a dificuldade de aplicar conceitos na prática ou à uma finalidade concreta devido a amplitude de concepções (MAXIMIANO, 2004). Através da teoria sobre paisagens (Landschaft) elaborada pela Escola Russa, Viktor B. Sochava interpretou essa herança sob uma visão da Teoria Geral de Sistemas, consolidada por Ludwig von Bertalanffy. Isso significava que o conceito de Landschaft (paisagem natural) foi considerado como si- nônimo da noção de geossistema (RODRIGUEZ & SILVA, 2002; STEVENS, 2014; RODRIGUEZ et al., 2015). Para Sochava, o termo paisagem deveria ser substituído, sobretudo em função de sua polissemia e seu uso em diversas disciplinas. Nesse sentido, o termo geossistema seria mais adequado ao se referir especificamente às formações naturais que se manifestam na superfície terrestre (PREOBRA- ZHENSKIY, 1983; sem*nOV & SNYTKO, 2013; MIKLÓS et al., 2019). Sob tutela da Escola de Geografia da França, Georges Bertrand publi- cou em 1968 um artigo intitulado “Paysage et géographie physique glo- bale: Esquisse méthodologique” que foi um marco para a Geografia Física Ocidental. Nesse artigo, Bertrand (1972) concluiu que paisagem não é a simples adição de elementos geográficos disparatados. É, em uma determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpetua evolução (BERTRAND & TRICART, 1968; BERTRAND, 1972, 2004; MAXIMIANO, 2004; FÉ, 2014; DIAS & PEREZ FILHO, 2017). Os trabalhos de Bolós (1992), Carvalho et al. (2002), Vitte (2007), Bar- talini (2010), Barbosa e Gonçalves (2014) e Passos (2016) afirmam que, cro- nologicamente, a paisagem foi apresentada inicialmente como uma visão subjetiva e idealizada do homem em relação ao espaço territorial, e poste- riormente se transformou numa representação mais objetiva da realidade, constituindo-se como um conceito de caráter polissêmico. Sauer (1925) e Schier (2003) destacam que não é possível formar uma ideia de paisagem a não ser em termos de suas relações associadas ao tem- po, bem como suas relações vinculadas ao espaço, pois ela permanece em um processo constante de desenvolvimento ou dissolução e substituição. Os autores também afirmam que, no sentido corológico, a alteração da área 139 modificada pelo homem e sua apro- priação para o seu uso são de impor- tância fundamental; a área anterior à atividade humana é representada por um conjunto de fatos morfológicos, e as formas que o homem introduziu são um outro conjunto. A respeito dessa afirmação, Schier (2003) sugere uma separação da paisagem em natural e cultural, pois explicita que é o homem que atua como sujeito de ação na natureza e que projeta duas formas de nature- za, uma antes e outra depois da apro- priação humana, privilegiando a su- cessão histórica entre as duas. O autor ainda afirma que a paisagem cultural é a realização e materialização de ideias dentro de determinados sistemas de significação. Assim, a paisagem é hu- manizada não apenas pela ação, mas igualmente pelo pensar. A figura 01 apresenta estes autores e suas princi- pais contribuições para o conceito de paisagem na linha do tempo. Figura 01. Principais autores e suas contribuições para o conceito de paisagem. Elaboração do au- tor, 2022. Além destes autores (figura 01), Rodriguez & Silva (2002) e Dias & Pe- rez Filho (2017) relatam que a noção de paisagem sempre teve forte visão dualista. De um lado a perspectiva desenvolvida no final do século XIX e início do século XX que tinha uma acepção fortemente natural, expres- sando a ideia de interação entre todos 140 os componentes naturais (rocha, relevo, clima, água, solo e vegetação) e o espaço físico concreto, do outro lado a visão tradicional da análise isolada dos componentes naturais, que não permitia a interpretação das influências mútuas entre os componentes naturais, empreendidos sob uma visão me- tafísica e mecanicista Historicamente e muito em função do senso comum, os geógrafos dis- tinguem a paisagem natural da paisagem cultural. A paisagem natural se refere aos elementos combinados de terreno, vegetação, solo, rios e lagos, enquanto a paisagem cultural, humanizada, inclui todas as modificações feitas pelo homem, como nos espaços urbanos e rurais. De modo geral, o estudo da paisagem exige um enfoque, do qual pretende-se fazer uma avaliação definindo o conjunto dos elementos en- volvidos, a escala a ser considerada e a temporalidade na paisagem. Enfim, trata-se da apresentação do objeto em seu contexto geográfico e histórico, levando em conta a configuração social e os processos naturais e humanos (SCHIER, 2003). PATRIMÔNIO MUNDIAL NATURAL: VALOR E PROTEÇÃO PARA A NATUREZA A preocupação com a definição e a implementação de políticas para salvaguardar os bens que conformam o patrimônio remonta ao final do século XVII, destacadamente no período da Revolução Francesa, voltada especificamente para a preservação do patrimônio cultural e sua memória (CHOAY, 2001; LENIAUD; 2002; ZANIRATO & RIBEIRO, 2006; BRITO, 2018). Sustentada pelo entendimento o céu e o astro Sol. Feito o desenho, perguntou: “Que paisagem é essa?” Na con- tinuidade, acrescentou uma moradia, um caminho e uma roça ao mesmo desenho e perguntou: “E essa?”. Revela, este breve exemplo, o debate sobre a concepção de paisa- gem (o conceito), o qual se observa, ao longo da História, seja no campo científico, seja no campo das artes, seja, enquanto interesse específico, no campo da Geografia, com variação de significados e/ou adjetivações. Por muito tempo, atribuímos essa variação de significados a uma fragilidade do conceito, isto é, a sua amplitude, à dificuldade de sintetização dos seus ele- 19 mentos constituintes. Mais recentemente, atribui-se a condição polissêmica ao conceito de paisagem, o que significa compreender e aceitar a possibili- dade de suas diversas compreensões, que se associam a escolhas, a temas, os quais se deseja investigar, a campos de conhecimento e seus pressu- postos, a procedimentos analíticos utilizados, enfim, à forma de estar na paisagem e com a paisagem. Expressa, tal polissemia, conforme Bertrand (1995), a ampliação da fragmentação em Geografia; algo que se amplia e toma corpo no Brasil, a partir dos anos 1990, aproximadamente. Neste escrito, não trataremos do resgate histórico desse conceito, pois o tema acumula análises, que expressam as mais variadas leituras e interpretações sobre paisagem. Indicamos breves referências: Sauer (1982), Huggett e Perkins (2004) e Aliata e Silvestri (1994), e, da mesma forma, Passarge (1982), Ab’Saber (1969), Tricart (1982) e Troll (1982), no tocante à Geografia Física. E destaco, mais recentemente, os textos de Vitte (2007) e de Abreu (2017). Vitte (2007) analisa a constituição do conceito de paisagem no período Moderno, iniciando, conforme expõe o autor, citando Chauí: “Moderna- mente, o conceito de paisagem se desenvolveu no Renascimento, a partir da noção de paesaggio, que se estrutura com a pintura, associado ao con- ceito de extensão” (CHAUÍ, 1999 apud VITTE, 2007, p. 73). Acrescentando, especificamente, em relação à Geografia Física, é com “[...] as reflexões de Goethe, de Humboldt, de Ritter e de Richthofen na Geografia Física, (que) a paisagem passou a ser compreendida como o re- sultado de uma relação entre a epiderme da Terra e as culturas, ao longo da História.” (VITTE, 2007, p. 71.). Abreu (2017), alongando a análise temporal, ao resgatar a origem do conceito, considera que: [...] muito antes dos conceitos modernos e contemporâneos de paisagem serem formulados, ela já estava no âmago da evolução técnico-cultural do Homem, participando de seus processos de aprendizado, definidores de formas e tipos de comportamentos e comunicações que conduzirão à instituição da linguagem. A pai- sagem emerge com o Homem. Ela influenciará seu psiquismo no processo de aquisição de maior consciência de si mesmo, como indivíduo e como grupo. A paisagem é presença antiga na cultura humana e nasce com o processo de produção. (ABREU, 2017, p. 145) 20 Em ambas as citações, há um ponto em comum: a paisagem surge com o ser humano, com suas ações sobre a epiderme da Terra, em um complexo arranjo de constituintes, cuja conceituação é, da mesma forma, complexa. Ela vai representar, dependendo da temática, concepções diferentes e, à medida que o conhecimento se torna disjunto, a paisagem vai sofrendo adjetivações: paisagem natural, paisagem humana, paisagem geográfica, paisagem A centralidade deste texto é resgatar as concepções de paisagem, so- bretudo, a partir dos anos 1960. Tomo, como referência para uma leitura deste contexto, num primeiro momento, o artigo Le Paysage entre la Natu- re et la Societé de Bertrand (1995). O autor, discorrendo sobre o tema, informa que, embora não haja nada mais familiar na Geografia do que a paisagem concreta e a sua descrição, nada é mais distante da Geografia do que as análises globais e metodoló- gicas da paisagem. E atribui esse distanciamento entre a descrição empírica e a reflexão metodológica, por sua vez, à ausência de reflexão teórica, na Geografia, sobre os conceitos de natureza e de paisagem. Na sua leitura, a partir dos anos de 1950-1960, a Geografia Física triun- fou, graças à expansão dos conhecimentos provenientes da Geomorfologia, devido ao seu avanço metodológico e, sobretudo, a sua autonomia, cada vez maior. Esta expansão é resultado do movimento científico e, neste, da Geografia. O conhecimento, que se expande, portanto, nos anos 1950- 1960, a partir da Geomorfologia, expressa uma significativa contribuição à análise da paisagem, a partir de um alinhamento compreensivo, que inicia com Passarge, conforme as descrições a seguir: Na Geografia Física, o tratamento da paisagem será feito por Pas- sarge (1866-1958) (PASSARGE, 1919/1920; 1922) em suas obras Pysiologische Morphologie (1912), Die Grundlagen der Lands- chaftskunde (1919/1920) e Die Landschaftsgürtel der Erde (1922). Nelas, o corolário da fisiologia da paisagem foi o eixo estrutura- dor de sua obra. Assim, a compreensão do processo genético e estruturador das paisagens naturais, associado a um instrumental cartográfico, permitiria ao geógrafo estabelecer uma ordem e uma hierarquia entre as paisagens, passando do nível local ao zonal. (VITTE, 2007, p. 75) Referindo-se a Passarge, Abreu (2017) resgata, além do conceito, sua proposição analítica: 21 Para Passarge, a Landschaftskunde seria a teoria ou ciência da disposição e compreensão dos espaços, onde ocorre a fusão dos componentes unitários da paisagem. Ela permitiria se chegar a uma tipologia de paisagens e a construção de complexos ou mo- delos ideais (ideale gebilde). Deveria adotar um princípio de classi- ficação apoiado no conceito de sistema, como já havia feito Lineu no campo da taxonomia das plantas. Procedimentos comparativos gerariam um sistema de tipos de paisagens que produziriam os fundamentos da análise espacial da paisagem. Pela importância relativa dos elementos. (ABREU, 2017, p. 151) Estas duas passagens permitem que se evidencie categorias que ex- pressam o sentido atribuído à paisagem, ou seja, o espaço e o tempo em movimento e em transformação. Normalmente, e assim aprendemos, a paisagem é aquilo que a vista alcança, a materialidade. Essas duas concepções são representações mate- riais e instantâneas, ou seja, indicam, no entendimento da paisagem, a sua dimensão estática, acrescida, por outro lado, da interpretação da paisagem como produto histórico ou expressão de seu movimento no tempo. Perpas- sam a compreensão da paisagem, de um lado, a influência da perspectiva geométrica e sua contribuição à representação artística no Renascimento e, de outro, a valoração do tempo, associada ao movimento romântico ale- mão, numa interpretação trazida em Silvestri 2011. Nesse sentido, cabe dizer que a contribuição vinda da Alemanha, a partir da Geomorfologia, é significativa, na medida em que permite com- preender a paisagem para além de sua instantaneidade, ou seja, no seu movimento. Compreendido isto, torna-se claro que uma análise da paisa- gem pressupõe ir além da descrição de seus elementos; implica compreen- der sua funcionalidade, ou sua fisiologia, além de seu processo histórico de formação. Por outro lado, nesse estudo estão imbricados a questão da escala e o entendimento de sua diversidade: uma possibilidade de classificação, apoiada “num sistema”. Aqui, cabe um comentário: quando Abreu (2017) se refere à sistema, compreendemos que sua referência diz respeito a um sistema lógico de classificação, nesse caso tendo como suporte a dimensão espacial, ou seja, uma classificação que Kant (2007) propunha para a Geo- grafia Física: um sistema para além do lógico, um sistema lógico-espacial, que seria, para Kant (2007), o diferencial da Geografia Física. 22 A PAISAGEM, DESDE OS ANOS 1960 A paisagem, conforme Bertrand (1995), assume sua cientificidade, com maior expressão, no contexto dos anos 1960, quando o progresso do co- nhecimento geomorfológico de que o bem validava uma dada his- tória por ser testemunho irrepreensível dessa história e mostrar as etapas evolutivas da atividade humana, a ideia de patrimônio e a necessidade de proteção através de políticas especificas expandiu para partes do mundo ocidental (ZANIRATO & RIBEIRO, 2006). As preocupações com as áreas ambientais e a necessidade de sua preservação ou conservação se iniciaram no século XIX, quando os monu- mentos naturais (termo cunhado por Alexandre Von Humboldt) foram alvo de movimentos favoráveis à sua proteção, sobretudo por valores estéticos. Sob influência de diversos artistas da época, entre eles François Millet e Vic- tor Hugo, surge a noção de proteção desses espaços naturais (FERREIRA, 2006; ZANIRATO & RIBEIRO, 2006; GUIGNIER & PRIEUR; 2010; CHAM- 141 CHAM, 2015; VERSACI, 2016). Na escala internacional, a associação do patrimônio cultural à natureza se iniciou em 1956, quando a UNESCO, por meio do Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauração dos Bens Culturais (ICCROM), uma organização intergovernamental, dedicou-se ao tema (JOKILEHTO, 2000; SCIFONI, 2003; ZANIRATO & RIBEIRO, 2006; UNESCO, 2008; IC- CROM; 2020). Contudo, originalmente, partiu dos Estados Unidos a ideia institucional de direcionar a proteção aos sítios culturais aos sítios naturais, através de uma conferência em Washington na qual a Casa Branca solicitou a criação de uma “Fundação do Patrimônio Mundial”, na qual fosse possível uma cooperação internacional para garantir a proteção das “maravilhosas áreas naturais e paisagísticas do mundo e os sítios históricos para o presente e para o futuro de toda a humanidade” (ZANIRATO & RIBEIRO, 2006; HA- ZEN, 2008; UNESCO, 2008; 2015; 2017; ADIE, 2017). Em 1968, a União Internacional para Conservação da Natureza e seus Recursos (IUCN), criada em 1948, elaborou propostas similares para seus membros (ZANIRATO & RIBEIRO, 2006; UNESCO, 2008; 2017). Essas preo- cupações com a preservação das áreas naturais foram expressas também no Programa Ambiental da ONU, no Programa Homem e Biosfera da UNESCO e em diversas conferências internacionais sobre parques nacionais (POCO- CK, 1997). Por fim, essas foram apresentadas à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano em Estocolmo em 1972 (ZANIRATO & RIBEIRO, 2006; UNESCO, 2008; 2017). O fortalecimento internacional da temática Patrimônio Cultural desen- cadeou na 17ª Assembleia Geral da UNESCO, ocorrida em 1972 em Paris. Nela foi adotada a “Convenção para Proteção do Patrimônio Mundial, Cul- tural e Natural” e aprovou-se a adoção de apenas um texto para o referido acordo (SLATYER, 1983; UNESCO, 2017). Assim, a Convenção para Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural foi a resposta a uma preocupação crescente sobre o estado de con- servação do patrimônio cultural e natural mundial (UNESCO, 2008). Gonçalves (2002) e Scifoni (2006, 2008) corroboram que o patrimônio natural apareceu historicamente como produto de preocupações com a cul- tura, e afirmam que a construção da ideia de patrimônio natural tem como base dois princípios: 142 • Princípio da monumentalidade – a qual se reflete em uma natureza espetacular, grandiosa, quase sempre isenta da ação humana, into- cável e disponível apenas para fruição visual. Esse princípio foi reafir- mado pela Convenção de Paris em 1972, em que os bens deveriam expressar valor universal do ponto de vista estético, científico e de conservação (SCIFONI, 2006, 2008; FERREIRA, 2006; BELLO, 2016). • Princípio do cotidiano – a natureza é entendida como parte da me- mória coletiva, das histórias de vida; a natureza como componen- te das práticas socioespaciais (GONÇALVES, 2002; SCIFONI, 2006, 2008; FERREIRA, 2006; BELLO, 2016). Segundo Ferreira (2006), nes- sa condição o patrimônio passa a ser não a natureza em si, mas o conjunto de relações simbólicas que envolvem lugar e sujeito. A Convenção configurou, ainda, o entendimento de que a perda por deterioração ou desaparecimento do patrimônio resultaria em um empo- brecimento da herança de todo o mundo, sendo assim, uma ação global seria imprescindível para enfrentar o problema (UNESCO, 1972; O’KEEFE, 2004; HODDER, 2010; ZARATTINI & IRVING, 2012; UNESCO, 2017, 2020). Para a UNESCO, ao considerar o duplo aspecto cultural e natural do arcabouço patrimônio, a Convenção rememora as formas pelas quais o ho- mem interage com a natureza e, ao mesmo tempo, a necessidade funda- mental de preservar o equilíbrio entre ambos (UNESCO, 1972, 2012, 2017, 2019, 2020; CLEERE, 1996; RODWELL, 2012; GULLINO & LARCHER, 2013; LOSTAL, 2017; ALBERT & RÖHLEN, 2018). Dessa forma, a Convenção clas- sificou patrimônio da seguinte forma (Quadro 1) 143 Quadro 1. Classificação de patrimônio cultural e natural, conforme a Convenção do Patrimônio Mundial Artigo/Item A B C 1º - patrimônio cultural Os monumentos – Obras arquitetô- nicas monumentais, elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de ele- mentos com valor universal excep- cional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência Os conjuntos – Grupos de cons- truções isoladas ou reunidas que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisa- gem tem valor universal excep- cional do ponto de vista da histó- ria, da arte ou da ciência Os locais de interesse – Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de inte- resse arqueológico; comum valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou an- tropológico 2º - patrimônio natural Os monumentos naturais constituí- dos por formações físicas e biológi- cas ou por grupos de tais formações com valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico As formações geológicas e fisio- gráficas e as zonas estritamen- te delimitadas que constituem habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, com valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conser- vação Os locais de interesse natu- rais ou zonas naturais estri- tamente delimitadas, com valor universal excepcional do ponto de vista da ciên- cia, conservação ou beleza natural Fonte: UNESCO, 1972, 2012, 2017, 2019, 2020. Da mesma forma, a Convenção desenvolveu critérios precisos para a inscrição de bens na Lista de Patrimônio Mundial e para a prestação de assistência internacional no âmbito do Fundo do Patrimônio Mundial. Esse documento foi intitulado Diretrizes operacionais para implementação da Convenção do Patrimônio Mundial, e estabeleceu dez categorias para o reconhecimento do Patrimônio Mundial (FREY & STEINER, 2011; GULLINO & LARCHER, 2013; FREY et al., 2013) (Quadro2): 144 Quadro 2. Critérios para inscrição de bens na lista de Patrimônio Mundial CRITÉRIOS (i) representam uma obra-prima do gênio criativo humano; (ii) exibir um intercâmbio importante de valores humanos, ao longo de um período ou dentro de uma área cultural do mundo, em desenvolvimen- tos em arquitetura ou tecnologia, artes monu- mentais, planejamento urbano ou paisagismo; (iii) dar um testemunho único ou pelo menos excep- cional de uma tradição cultural ou de uma civili- zação que está viva ou desapareceu; (iv) ser um exemplo notável de um tipo de edifício, conjunto arquitetônico ou tecnológico, ou pai- sagem que ilustra estágio(s) significativo(s) da história humana; (v) ser um excelente exemplo de assentamento hu- mano tradicional, uso da terra ou do mar que é representativo de uma cultura (ou culturas), ou interação humana com o meio ambiente, espe- cialmente quando ele se tornou vulnerável ao impacto de mudanças irreversíveis; (vi) estar direta ou tangivelmente associado a eventos ou tradições vivas, a idéias ou crenças, a obras artísticas e literárias de notável significado uni- versal. (O Comitê considera que esse critério deve ser utilizado preferencialmente em conjun- to com outros critérios); (vii) conter fenômenos naturais superlativos ou áreas de excepcional beleza natural e importância es- tética; (viii) serem exemplos notáveis que representam os principais estágios da história da Terra, incluindo o registro da vida, processos geológicos signi- ficativos em andamento no desenvolvimento de formas de relevo ou características geomórficas ou fisiográficas significativas; (ix) serem exemplos notáveis que representem pro- cessos ecológicos e biológicos significativos em curso na evolução e desenvolvimento de ecossis- temas terrestres, de água doce, costeiros e mari- nhos e comunidades de plantas e animais; (x) conter os habitats naturais mais importantes e significativos para a conservação in situ da diversidade biológica, incluindo aqueles que contêm espécies ameaçadas de Valor Universal Excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação. Fonte: LABADI & BANDARIN, 2007, 2012, 2017, 2019, 2020. 145 Destaca-se os itens vii, viii, ix e x como direcionados para o reconhe- cimento de Patrimônio Mundial Natural. Também são critérios importantes a proteção, a administração e a integridade do sítio. (PERRY, 2011; FREY & STEINER, 2011; UNESCO, 2017, 2019, 2020a). Scifoni (2006, 2008) destaca que a partir dessas categorias, estabe- lecidas pelas Diretrizes Operacionais para Implementação do Patrimônio Mundial, foram considerados três critérios norteadores do reconhecimento do valor universal: o estético, o ecológico e o científico. A Convenção definiu também que bens dotados de valor cultural ou natural poderiam ser inscritos como patrimônio universal. A proteção des- ses caberia à comunidade internacional. Tal entendimento visava estimular a cooperação internacional a proteger “as zonas naturais e paisagísticas maravilhosas do mundo e os sítios históricos para o presente e o futuro de toda Humanidade” (ARRUDA & RANGEL, 2016; GOMES & VITTE, 2017). Embora adotada em 1972, a Convenção entrou em vigor apenas em 1976, após a ratificação por vinte países, e as inscrições na Lista do Patrimô- nio Mundial começaram em 1978 (CLEERE, 1996; RAO, 2010). Após isso, a cada dois anos é realizado uma nova Assembleia Geral da UNESCO para a inscrição de novas áreas propostas e eleição dos Estados Partes do Co- mitê, esses se reunindo anualmente (ARRUDA & RANGEL, 2016; UNESCO, 2020b). Ou seja, somente na década de 1970, através da Convenção do Patrimônio Mundial, que a ideia de Patrimônio Natural se impôs internacio- nalmente (FERREIRA, 2006; PEREIRA, 2018). Zaratini e Irving (2012) afirmam que o conceito de Patrimônio Natural sofreu a mesma dinâmica no balizamento conceitual do patrimônio cultural e consequentemente as ações de conservação da natureza foram conduzi- das pelas regras e procedimentos adotados para a proteção de monumen- tos, na perspectiva da cultura. Além disso, ele sofreu novas ressignificações em decorrência da internalização da importância dos valores sociais asso- ciados aos processos de proteção da natureza (ZARATINI & IRVING; 2012). Para Scifoni (2008), a natureza é parte do legado cultural a ser deixada às futuras gerações. O autor defende que patrimônio cultural e natural são indissociáveis, principalmente por considerá-los como expressão típica de suas culturas, entendidas como o produto de uma relação que é estabele- cida com a natureza. Karpinski (2018) afirma que o grande responsável é o problema con- ceitual, já que, dentro do tema Patrimônio, a categoria “natural” tem sido considerada atualmente de forma similar a categoria cultural. Isso se deu principalmente após a “virada cultural” e os estudos “pós-coloniais” que 146 consideram a fronteira entre Natureza e Cultura muito tênue e até inexisten- te (KARPINSKI, 2016, 2018). Essa integração entre sociedade, natureza e cultura, que foi incorpora- da pela Convenção de Patrimônio Mundial da UNESCO, levou a concepção de que natureza e sociedade são indissociáveis, e possuem uma dimensão mais complexa, o que dificulta a classificação e gestão de áreas naturais. REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE PAISAGEM E PATRIMÔNIO NATURAL Apesar de terem surgido em momentos diferentes no contexto histó- rico, os conceitos de Paisagem e Patrimônio estão intimamente interliga- dos, e essa forte conexão trouxe grandes contribuições para a ciência, bem como desafios ainda a serem superados. O conceito (ainda polissêmico) de Paisagem enfrentou durante toda sua história muitas controvérsias e sempre foi objeto de adaptação, con- forme a interpretação e o contexto histórico exigiam e permitiam. Desde sua origem, a divergência entre a perspectiva da representação espacial e a perspectiva da percepção do meio dividiam as opiniões e os estudos sobre o conceito de paisagem. A divergência conceitual sobre a paisagem se perpetuou por todo o curso histórico, ora valorizando a estética e a representação idealizada ba- seada na percepção sensorial humana, ora se identificando com o entendi- mento de paisagem como representação territorial, em um momento anali- sando a paisagem de forma integrada, noutro momento particionando seus componentes e analisando-os separadamente. Sob abordagens objetivas ou subjetivas, os estudos sobre paisagem contribuíram para a divisão do conceito de paisagem da seguinte forma: paisagem natural, utilizando-se para isso dos conceitos ecossistêmicos, sua complexidade, elementos e di- nâmicas, e paisagem cultural, denotando identidade visual e espacial do espaço vivido pelo homem. Os estudos de Humboldt influenciaram fortemente na separação entre paisagem natural e cultural. A caracterização do espaço a partir das diferen- ças paisagísticas da vegetação desenvolvidas por ele possibilitou outros es- tudos de análise da paisagem sob um ponto de vista mais estrutural. Esses estudos contribuíram para a elaboração do conceito de paisagem natural desenvolvido por Krasnov. Schier (2003) corrobora com esse conceito ao afirmar que, geografica- mente, a paisagem se diferencia entre natural e cultural. A paisagem natural se refere aos elementos combinados de terreno, vegetação, solo, rios e lagos, enquanto a paisagem cultural, humanizada, inclui todas as modifica- ções feitas pelo homem, como nos espaços urbanos e rurais. 147 O dilema da integração ou não do homem na análise da paisagem retornava as discussões cientificas. As visões de geossistema de Sochava e Bertrand apresentam divergências na sua concepção conceitual e delimi- tação. Para Sochava, o geossistema definiria o objeto de estudo da Geo- grafia Física, constituído de elementos do meio natural, que podem sofrer alterações na sua funcionalidade, estrutura e organização, decorrentes da ação antrópica. Bertrand considera o homem como elemento integrante do geossistema (DIAS & PEREZ FILHO, 2017; LOPES et al, 2014). Observando o contexto e a evolução histórica dos conceitos, as pes- quisas sobre geossistemas também foram influenciadas pela divergência conceitual da paisagem, gerando escolas de estudos com abordagens di- ferentes que se perpetuam até os dias atuais. Contudo, essas divergências permitiram a evolução do estudo de sistemas complexos, tanto de paisa- gens naturais quanto de paisagens culturais, otimizando, assim, as tomadas de decisão no processo de planejamento e gestão territorial, auxiliando no processo de ocupação e exploração do território e respeitando as fragilida- des das áreas, a fim de promover o desenvolvimento regional, como afirma Beroutchachvili & Clope (1977). No século XX persiste a divergência conceitual e as opiniões dicotômi- cas sobre a integração ou não do homem nas análises da paisagem, o que interferiu na elaboração de outros conceitos como o de patrimônio. Similarmente ao ocorrido nas discussões sobre a paisagem, Humboldt influenciou fortemente os debates sobre a proteção de áreas ambientais com valores estéticos, o que ele denominou monumentos naturais. E, as- sim, surgiu pela primeira vez a perspectiva de proteção de algo que não foi criado pelo homem. Internacionalmente, em 1956, a UNESCO iniciou a associação do pa- trimônio cultural com a natureza, com base na ideia dos Estados Unidos de direcionar a proteção dada aos sítios culturais aos sítios naturais e na ideia de criação da Fundação do Patrimônio Mundial. Após alguns anos de dis- cussão, em 1972, na cidade de Paris na França, foi adotada a Convenção para Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Todo esse percurso histórico permite o entendimento de que inicial- mente o conceito de patrimônio tinha um forte apelo antropocêntrico, com interesse no homem e na sua existência, obras e culturas, compreenden- do os monumentos arquitetônicos, os sítios arqueológicos e os objetos e estruturas herdados do passado, dotados de valores históricos, culturais e artísticos; bens que representavam as fontes culturais de uma sociedade ou de um grupo social. Além disso, as ações para criação e gestão desses patrimônios também partiam de uma visão antropocêntrica. 148 Nos trinta anos que antecedem a criação da Convenção para Prote- ção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, entre as décadas de 1940 e 1970, ocorreram intensas discussões e pesquisas sobre análise da paisa- gem e a integração ou não do homem nessa análise, em se tratando de paisagem natural. Foi nesse período que tentou-se definir e distinguir mais claramente paisagem natural e cultural. O dilema entre a integração ou não do ser humano e suas interferên- cias na definição de paisagem natural desencadeou na dificuldade de deli- mitação da definição de patrimônio natural e patrimônio cultural. Gonçalves (2002) e Scifoni (2006, 2008) afirmam que o patrimônio na- tural apareceu historicamente como produto das preocupações com a cul- tura. Contudo, historicamente, percebe-se que a contradição sobre a pers- pectiva antrópica influenciou as divergências conceituais de paisagem, e, também, as questões conceituais sobre patrimônio. A alegada “dicotomia natureza x cultura” é talvez uma das caracterís- ticas mais importantes da convenção do patrimônio mundial. Ao lidar com esses dois tipos de patrimônio em artigos separados, a convenção parece traçar uma linha que diferencia os dois tipos. Falar de tal dicotomia não é sustentável, entretanto, pelo menos no que tange referir-se a algum tipo de separação bem definida. A inexistência de uma distinção clara na clas- sificação da UNESCO, de patrimônio cultural e natural, pode ser percebida na inclusão das palavras “obras combinadas da natureza e do homem” na definição de patrimônio cultural no Artigo 1° da Convenção (Lixinski, 2008). Conforme afirma Lixinski (2008), a dicotomização da natureza e da cul- tura no sistema de patrimônio mundial é, na melhor das hipóteses, parcial, senão simplesmente artificial, pois a prática sob a convenção evoluiu para uma abordagem mais holística do patrimônio, focada em seu significado, ao invés da maneira como se apresenta. O fato de os critérios para inscrição na lista do patrimônio mundial serem apresentados em uma única lista, ao invés de uma lista separada para o patrimônio cultural e natural, também é muito revelador. A integração ou não do homem no âmbito conceitual tornou o concei- to de paisagem difuso e, consequentemente, influenciou da mesma forma o conceito e a classificação do legado natural ou cultural a ser deixado para as gerações futuras. Essas definições nas classificações de patrimônio cultural que permi- tem sua interpretação como paisagem natural frequentemente causam con- fusão no momento de classificação, dificultando o processo de inscrição de áreas naturais como patrimônio universal e a gestão das áreas estabeleci- das como patrimônio natural. 149 A partir de 1992, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), através do seu programa World Heritage Sites, passou a integrar a categoria de Paisagens Culturais, além das categorias de Património Cultural e de Património Natural, na Convenção do Patrimó- nio Mundial, estabelecendo as definições e critérios para a sua classificação e gestão (Vieira, 2014). Essa simbiose surge, aparentemente, como uma tentativa de sanar a dificuldade de classificação de áreas que tenham carac- terísticas de ambas as categorias. No entanto, ela desfavorece a classifica- ção do patrimônio natural, podendo esse ser interpretado como um espaço que, de acordo com Karpinski (2018), tenha características de “intocado”, “virgem”, ou o mais próximo disso, cuja existência é improvável. CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente, as conexões entre os conceitos de Paisagem e Patri- mônio apresentam um aspecto evolutivo no qual a Paisagem influenciou diretamente o Patrimônio. Consequentemente, os dilemas encontrados na construção conceitual e classificação da paisagem também influenciaram significativamente as do patrimônio. A arte no período da Idade Média exerceu forte influência na elaboração inicial do conceito de paisagem, po- rém a paisagem já estava presente antes da percepção artística, em forma de natureza. Esse entendimento deveria ser considerado ao conceituar-se a paisagem natural. A percepção e as ações humanas existem pelo fato de existir um espaço na natureza que as desperta e, portanto, precede qual- quer manifestação antrópica. Natureza, essa, que se revela como um bem/ patrimônio que possui um valor a ser preservado e perpetuado para gera- ções futuras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, A. A. Significados semânticos da paisagem: paisaginário, paisageria, pai- sagelogia. Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, v. 33, p.144-156, 2017. ADIE, B. A. Franchising our heritage: The UNESCO World Heritage brand. Tourism Management Perspectives, v. 24, p. 48–53, 2017. DOI:10.1016/j.tmp.2017.07.002. AFONSO, C. M. Jardins do ocidente e do oriente: ordenamento ou recriação da paisagem. Paisagem Ambiente: Ensaios, São Paulo, n. 40, p. 107-132, 2017. AHLMANN, H. W.; FRÖDIN, J.; VON HOFSTEN, N. Reviewed Work:Die Grundlagen 150 der Landschaftskundeby Siegfried Passarge. Geografiska Annaler, v.2, p.273-278, 1920. DOI:10.2307/519533. ALBERT, M. 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A paisagem natural é um conceito muito maior, com dimensões globais e sem limites territoriais, a qual chamamos de Terra, mas poderíamos chamar de lar. 158 TURISMO DE NATUREZA, ECOTURISMO, NATUREZA E PAISAGEM: IMBRICATIVOS CONCEITUAIS Charlei Aparecido da Silva Patrícia Cristina Statella Martins O PREAMBULO, HÁ DE HAVER No poema Becos de Goiás, da poetisa Cora Coralina16, encontramos, logo na primeira estrofe, uma representação do significado da paisagem que perpassa a lógica racionalista e incorpora a percepção do indivíduo, o amor e o olhar daqueles que a completam: Becos da minha terra... Amo tua paisagem triste, ausente e suja. Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa. Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio. E a réstia de sol que ao meio-dia desce fugidia, e semeias polmes dourados no teu lixo pobre, calçando de ouro a sandália velha, jogada no monturo. Iniciar este ensaio com a estrofe de um poema tem um significado es- pecífico, pois é uma maneira de introduzir a discussão a partir de duas ques- tões que se farão presentes – delineando toda a estrutura textual e a análise dos conceitos que serão discutidos; o contraponto entre a racionalidade e a percepção, o entendimento sobre a natureza e paisagem, não no contexto clássico presente na Geografia, como tantos geógrafos o fizeram de forma clara e objetiva – concepções que estão presentes inclusive em muitas das referências utilizadas. O que buscamos é compreender a natureza e a pai- sagem como primordiais no âmbito do Turismo, ou, ao menos, em alguns 16 CORALINA (1997). 159 segmentos turísticos. Na atualidade, há diversos segmentos e tipologias envolvendo a prá- tica do Turismo em ambientes naturais, principalmente naqueles cujas ca- racterísticas permanecem pouco alteradas pela atividade humana ou que permitem o resgate de um convívio equilibrado com a natureza. Tais práti- cas lembram e resgatam a vivência e a concepção de paraísos perdidos e/ ou de conquista de ambientes selvagens, permitindo, assim, àqueles que se propõe a isso, transpor desafios e limites impostos pelo mundo natural. Mesclam, assim, racionalidades com sensações; geram percepções carre- gadas de subjetividades que mobilizam o trade e geram demandas espe- cíficas. Nesse sentido, o presente capítulo procura discutir o conceito de Tu- rismo de Natureza que tem na paisagem seu principal recurso e que é transformada pelo turismo em diversos níveis. Autores como Lima (2020), Martins (2018), Martins e Silva (2018), Eichenberg e Silva (2013) também se dedicaram a discutir o Turismo de Natureza. O escopo conceitual aqui discutido apresenta mais um elemento: a concepção de natureza e a suas relações com a sociedade, e, consequentemente, com a atividade turística. A concepção de Turismo de Natureza e seu contexto no Turismo possui três raízes básicas: o racionalismo (onde há uma negação dos aspectos de natureza e o homem como elemento superior), o romantismo (que traz va- lores subjetivos perdidos no racionalismo e uma relação mais harmoniosa) e o naturalismo (com suas ideias preservacionistas e conservacionistas, o homem como responsável pelos desequilíbrios ambientais e o isolamento da natureza como o único caminho possível). Não há como negar a importância da natureza para atividade turísti- ca, bem como as bases que sustentam o ideal de natureza na sociedade e, portanto, no Turismo. No entanto, qual o significado real da expressão Turismo de Natureza? O termo ainda está sendo cunhado e, somente nos últimos anos, tem sido utilizado em alguns estudos dedicados à essa temá- tica, principalmente no Brasil. De fato, nele há uma hibridez conceitual no qual o trinômio racionalismo-romantismo-naturalismo se faz presente desde sua concepção e apropriação pelo mercado. A pretensão aqui não é de impor um conceito único e fechado, nem de esgotar as questões e os desdobramentos que envolvem a aplicação desse conceito. A intenção é fomentar a discussão sobre um conceito cuja falta de definição clara e objetiva implica distorções que impossibilitam a prá- tica de ações mitigadoras e a implementação de regulamentações para o planejamento da atividade turística mais eficiente e com consequências ne- gativas menos intensas, sobretudo ao considerar que existe um problema 160 conceitual em questão, principalmente pelo uso indiscriminado do termo Ecoturismo que, de maneira inconsequente, tem sido utilizado para nomear atividades que não se enquadram nos princípios atrelados ao termo. A CONCEPÇÃO DE NATUREZA NA ATIVIDADE TURÍSTICA: A NATUREZA-PAISAGEM A concepção de natureza presente na atividade turística, atualmente, decorre de uma construção social coletiva, impregnada de sig- nificação simbólica e valores mercadológicos, os quais não estão estanques nem isolados de outros valores sociais. Os valores, na verdade, decorrem de mudanças socioculturais ocorridas, no mínimo, nos últimos três séculos, e que vieram, paulatinamente, a alicerçar e a possibilitar uma condição de maior suscetibilidade da sociedade para a inclusão da natureza em diversas esferas, entre as quais, a da política, da educação, da economia e do lazer – área que enquadra o Turismo. Como destaca Gonçalves (1990, p. 23): Toda sociedade, toda cultura, cria, inventa, institui uma determi- nada idéia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens er- guem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura. Assim, a concepção de natureza que permeia a sociedade ocidental e, portanto, o Turismo de Natureza, um dos temas centrais deste capítulo, alicerça-se em três raízes básicas: o racionalismo, o naturalismo e o roman- tismo. Todas essas concepções, estruturadas basicamente nos séculos XVII, XVIII e XIX, mostram as profundas relações que as sociedades estabelecem com seus ambientes ou como elas os enxergam. Sobre o assunto, Carvalho (2002, p. 40) afirma: ...muitas das sensibilidades que constituem o ideário ambiental contemporâneo poderiam ser compreendidas como herdeiras das visões que passam pela compreensão iluminista de uma natureza controlada pela razão, pela visão pastoral idílica do naturalismo inglês do século XVII, pelas novas sensibilidades burguesas do sé- culo XVIII, pelo romantismo europeu dos séculos XVIII e XIX e pelo imaginário edênico sobre a América. 161 Ou, ainda, como afirma Thomas (1996, p. 18): Hoje em dia, não se pode abrir um jornal sem se encontrar alguma discussão exaltada sobre o abate de focas cinzentas, o corte de árvores em Hampton Court, ou a salvação de animais ameaçados. Entretanto, para entender tais sentimentos atuais devemos retor- nar ao início do período moderno. Com efeito, foi entre 1500 e 1800 que ocorreu uma série de transformações na maneira pela qual homens e mulheres, de todos os níveis sociais, percebiam e classificavam o mundo natural ao seu redor. Alguns dogmas desde muito estabelecidos sobre o lugar do homem na natureza foram descartados, nesse processo. Surgiram novas sensibilidades em re- lação aos animais, as plantas e à paisagem. O relacionamento do homem com outras espécies foi redefinido; seu direito a explorar essas espécies em benéfico próprio se viu fortemente contestado. Esses séculos produziram tanto um intenso interesse pelo mundo natural como as dúvidas e ansiedades quanto à relação do homem com aquele que recebemos como herança em forma amplificada. No período citado por Thomas, o racionalismo científico serviu de base para a estruturação da maioria das ciências no período moderno. Foi a par- tir da negação dos aspectos místicos ou mitológicos da natureza que a ciên- cia moderna se estruturou e fundamentou. Com o racionalismo, a natureza deixou de ser vista como algo ameaçador ao desenvolvimento social, e as experimentações e o raciocínio lógico permitiram compreender os proces- sos da natureza e seus arranjos, terminando, assim, com séculos de submis- são do homem ao seu meio. Segundo a ótica racionalista, a natureza passa a ser compreendida e dominada conforme os interesses sociais: é preciso compreender a natureza para, pragmaticamente, aproveitá-la como recur- so – daí a necessidade de entender seus processos e arranjos, por meio da experimentação. Como destaca Lenoble (1990, p.199), “o racionalismo científico do século XIX pretendia privar para todo o sempre de uma Natu- reza de imaginação e de sonho”. A ideia da natureza como recurso é, portanto, a base da sua relação com a sociedade, no racionalismo. Sob a perspectiva social, a natureza pas- sa a ter os mais diversos significados e, acima de tudo, as mais diversas possibilidades e potencialidades de usos. Essa condição desencadeia um processo de negação de espaços que não condizem com a perspectiva de uma sociedade moderna, cujas características não se assemelham, de maneira alguma, as áreas ou espaços naturais não modificados pela ação humana. Nesse processo, as áreas urbanas e industriais passam a ter maior significado na organização social e espacial. A ideia fundamenta-se em Car- 162 valho (2002, p. 41), que afirma: É nesse contexto que a cultura ilustrada se ergue como uma pa- rede invisível a demarcar um território humano civilizado contra a natureza selvagem. É nesse momento que se constrói historica- mente a representação da natureza como lugar da rusticidade, do incultivado, do selvagem, do obscuro e do feio. A cidade, contraponto da natureza selvagem, então se apresenta- va como lócus da civilidade, o berço das boas maneiras, do gosto e da sofisticação. Sair da floresta e ir para cidade era um ato ci- vilizatório. As pessoas criadas na cidade eram consideradas mais educadas que aqueles que viviam nos campos. A natureza, tida então como o Outro da civilização, representava uma ameaça à ordem nascente. [...] As áreas silvestres, montanhas e pântanos era tidos como os símbolos vivos do que merecia ser condenado. Aguiar (2005, p. 11) ajuda a compreender essa proposição ao desen- volver a análise do significado da natureza no racionalismo: [...] a natureza e as tradições passaram a ser negadas. Os espaços naturais e representativos de costumes tradicionais passaram a ser vistos como espaços não racionais. Os espaços urbanizados pas- saram a ser valorizados como representativos da racionalidade, so- beranos em relação aos espaços naturais e rurais, sendo que estes deveriam ser dominados pelo homem e racionalizados. O racionalismo teve como marca, então, a negação dos aspectos da natureza e a construção do ethos moderno de civilização, cujos valores an- tropocêntricos foram potencializados a níveis até então nunca registrados na história da humanidade. Essa condição subsidiou toda e qualquer forma de exploração da natureza, principalmente como fonte de matérias-primas para os processos industriais que nasciam. A conquista, cada vez maior, de áreas naturais, selvagens, como fonte de recursos, é a marca da moderni- dade instituída pelo racionalismo. O homem passa, assim, a ser visto como elemento superior e externo à natureza, capaz de entendê-la e dominá-la, como destaca, categoricamente, Gonçalves (1990, p. 51): A natureza, ao contrário dos homens, não tem subjetividade, di- zem. Portanto, pode ser estudada objetivamente e a compreensão das suas leis, dos seus processos, da ordem que a governa deve servir de ponto de referência para uma sociedade racional, livre das paixões, das ideologias e da subjetividade típica dos homens. 163 Em contraposição ao ideário da razão, surgiram o naturalismo e o ro- mantismo. Para essas correntes filosóficas, os aspectos e os condicionan- tes da natureza deveriam ser analisados sob um outro olhar, muito além da ideia única e exclusiva de recurso. A base da contestação se apoia nos problemas derivados do pragmatismo e do utilitarismo impostos pelo ra- cionalismo, principalmente no que diz respeito à relação do homem com a natureza após a Revolução Industrial, problemas que, atualmente, deno- minamos impactos ambientais, muitos, inclusive, previstos nas legislações federal, estadual e municipal. O Romantismo, que surgiu a partir da metade do século XVII e se esten- deu até a primeira metade do século XIX, tinha como preocupação resgatar tradições culturais, características nacionais, perspectivas sentimentais no plano individual e coletivo, destacando a personalidade, a sensibilidade, a emoção e os valores subjetivos perdidos durante a implementação do ra- cionalismo científico. Ele incorporou a subjetividade e o olhar sobre a natu- reza, então, ganhou nova essência, prevalecendo, assim, uma visão otimista da relação do homem com a natureza. A contemplação, o conhecimento empírico, a valorização da natureza como fonte primária da vida ganharam uma nova conotação e passaram a estabelecer possibilidades até então inconcebíveis. Surgindo na forma de uma reação ao sistema capitalista nascente e à uniformidade pragmática racionalista, o Romantismo tratava da natureza que circundava a sociedade e da natureza interna ao homem. Ele deveria refletir sobre como os aspectos naturais o influenciavam e sobre a capaci- dade desses em contribuir para os sentimentos e a interioridade humana. Tinha-se, assim, um homem capaz de se livrar dos condicionantes impuros presentes na sociedade. O indivíduo romântico, dessa maneira, refletiria a individualidade orgânica da natureza e a individualidade singular do ser humano. Marilena de Souza Chauí ao prefaciar Rosseau (ROSSEAU 1999, p. 14 e 15) o maior representante do Romantismo, declara: O retorno à pureza da consciência natural é o dever fundamental de todo homem, segundo Rousseau. [...] O sentimento como instrumento de penetração na essência da interioridade é outro dos elementos estruturais do pensamento de Rousseau. Núcleo central de todo pensar filosófico, constituiria a chave com que se pode compreender toda a Natureza e alcançar misticamente o próprio infinito. Deixar de lado as convenções da razão civilizada. E imergir no fundo da Natureza através do senti- mento significa elevar-se da superfície da terra até a totalidade dos 164 “seres, ao sistema universal das coisas, ao ser incompreensível que a tudo engloba”. Percebido o espírito nessa imensidão, o indiví- duo não pensa, não raciocina, não filosofa, sem voluptuosidade, abandonando-se ao arrebatamento, perde-se com a imaginação no espaço e lança-se ao infinito. Essa imersão mística no infinito da Natureza equivale a penetrar na própria interioridade, alcançar a consciência da liberdade e atingir o sentimento íntimo da vida, com o qual o homem teria consciência de sua unidade com os semelhantes e com a universalidade dos seres. No relacionamento místico com a Natureza, segundo Rousseau, não se desfruta nada externo ao próprio indivíduo e sua existência; durante o lapso de tempo em que recorre a relação, o homem basta-se a si mesmo, como se fosse Deus. A idéia de que os sentimentos místicos da Natureza não podem ser separado do sentimento de interioridade pessoal constitui aqui- lo que se costuma chamar o espírito “romântico” de Rousseau. Vendo a natureza como fonte de felicidade humana, revelando ao máximo a carga mística de sua vivência e formulando a concepção de que ela só pode ser compreendida pelo sentimento e não pela razão, Rousseau desempenhou papel original dentro da filosofia do século XVIII. Ou, ainda, como destaca Carvalho (2002, p. 50): No campo filosófico, Rousseau é o pensador do século XVIII que, marcado pela valorização da natureza e do homem natural, en- carna de modo singular essa conexão entre as novas sensibilida- des e o espírito romântico. Na contracorrente do iluminismo, que via a natureza como matéria exterior ao sujeito humano e objeto do conhecimento pela razão, Rousseau valoriza à natureza como dimensão formadora do humano e fonte de vida que se apreen- de principalmente pelos sentimentos, incluindo-se aí também as experiências penosas que a educação da natureza tem a ensinar aos humanos. A visão da natureza como ideal de perfeição dege- nerado pela ação humana que se exerce contra a ordem natural é exemplar de uma sensibilidade romântica. Desse modo parece conveniente afirmar que o Romantismo alimentava o anseio por uma experiência alternativa, muito além daquela proporciona- da pelo ideal de modernidade, presente no ethos urbano. Ele colocava em discussão o caráter utilitarista da sociedade e sua capacidade predatória, buscando construir, a partir da negação da modernidade, um ethos ligado ao campo, pelo qual, a relação homem-natureza seria mais harmônica e, em última instância, a relação do homem com o homem, mais justa e equidis- 165 tante. A visão naturalista, ao contrário da romântica, pouco acreditava na sub- jetividade e, em alguns momentos, mantinha uma condição mais pessimista quanto à relação do homem com a natureza. Todavia, seus defensores pre- gavam, ao mesmo tempo, a necessidade da incorporação do mito de arcá- dia, cujo simbolismo reside na possibilidade de um convívio harmônico do homem com a natureza. Sob essa perspectiva, os estudos científicos da na- tureza deveriam privilegiar a compreensão dos aspectos que circundavam as cidades para estabelecer relações mais harmônicas e menos degradantes do que as registradas. Essa condição deveria ser inexoravelmente incorpo- rada pela sociedade, a qual passaria, então, a entender que a natureza era um bem inestimável, um presente dado pelo Criador, cuja benevolência permitiu ao homem o seu contemplar e convívio (Carvalho, 2002, p. 41-42). Essa corrente, nascida na Inglaterra vitoriana, passou a influenciar, cir- cunstancialmente, as pesquisas científicas elaboradas nos séculos XVIII e XIX, sob um novo prisma: a natureza passou a ser estudada sob a ótica da possibilidade de sua finitude e erradicação. Incorporou-se, na abordagem científica, os ideais preservacionistas e conservacionistas, condição até en- tão incompatível com a visão racionalista dominante. A visão naturalista passou a indicar e demonstrar que as relações do homem com a natureza causavam situações e problemas não condizentes com o estabelecimento de um equilíbrio harmônico. A sociedade humana passou a ser vista como parte integrante de um todo muito maior, cujos limites extrapolavam a área civilizada circundante. O homem passou a ser visto como o agente respon- sável pelos desequilíbrios e cabia só a ele buscar caminhos para mudanças. Sobre o estabelecimento desses novos valores, McCormick (1992, p. 22-23) afirma, com clareza, que: A compreensão do ambiente natural que emergiu das pesquisas dos séculos XVII e XIX afetou profundamente a visão do homem quanto a seu lugar na natureza. A era vitoriana foi um período de grande autoconfiança e segurança, embora o ideal vitoriano de ci- vilização tenha quase sempre dependido da conquista da natureza pela ciência e pela tecnologia. O domínio sobre o meio ambiente era visto como essencial para o progresso e para a sobrevivên- cia da raça humana. Mas uma “consciência biocêntrica” emergiu gradualmente, reforçando o restabelecimento do sentido de in- ter-relação entre o homem e a natureza e a aceitação de uma res- ponsabilidade moral relacionada à proteção de natureza contra os abusos. [...] O desejo de preservar a natureza tornou-se então implícito no estudo da mesma, e clubes e naturalistas passaram a se preocupar 166 com os danos infligidos tanto por seus semelhantes quanto por outros. À medida que os naturalistas aprendiam mais sobre a na- tureza, passaram a reconhecer seu valor e o calibre das ameaças colocadas pela atividade humana. É oportuno frisar que a corrente naturalista tinha como fundamento o isolamento da natureza e, portanto, o afastamento do homem das áreas ainda não degradas, como o único caminho possível para manutenção das características naturais e do equilíbrio que nela reinava. Com essa atitude os naturalistas pretendiam construir, no imaginário social, uma natureza sem conflitos, regida por um padrão de organização que, em última instância, deveria servir de modelo para a sociedade, o que, diga-se de passagem, demonstrava-se extremamente contraditório, haja vista os valores sociais predominantes. Essas áreas serviriam, assim, de registro, podendo a so- ciedade admirá-las e reverenciá-las por meio da realização de atividades que não causassem modificações significativas. Essa condição mostra-se de forma muito clara em Diegues (1996, p.62), cuja obra se tornou referência na discussão sobre a abordagem do conceito de natureza na sociedade moderna e contemporânea: Para o naturalismo da proteção da natureza do século passado, a única forma de proteger a natureza era afastá-la do homem, por meio de ilhas onde este pudesse admirá-la e reverenciá-la. Esses lugares paradisíacos serviriam também como locais selvagens, onde o homem pudesse refazer as energias gastas na vida estres- sante das cidades e do trabalho monótono. Parece realizar-se a re- produção do mito do paraíso perdido, lugar desejado e procurado pelo homem depois de sua expulso do Éden. Da mesma maneira, convém observar que as influências desses funda- mentos estão presentes na estruturação do movimento ambientalista do final do século XIX e início do XX e que, ainda hoje, permeiam a base dos discursos sobre a necessidade de proteção à natureza. Os movimentos am- bientalistas se institucionalizaram sob a égide e necessidade urgente da criação de áreas delimitadas e livres de ações humanas, mas, assim como no passado, os valores sociais que estruturam e, em grande parte, ainda determinam os padrões de organização espacial vigente são pouquíssimos questionados e, quando o são, ocorrem com uma superficialidade que im- pede qualquer mudança significativa para a alteração do quadro. Faz-se necessário registrar que apenas recentemente, nessa segunda década do século XXI, essa visão isolacionista passou a ser questionada e o papel das 167 comunidades tradicionais passaram a ser reconhecidos no que tange a ma- nutenção das condições originais, na preservação e conservação dos am- bientes naturais. Portanto, a ideia de natureza que permeia a atividade turística na atua- lidade não diz respeito ao entendimento dos processos naturais que levam à organização e aos arranjos dos geossistemas17 das áreas utilizados para sua prática e desenvolvimento. Ela não abarca o intrincado e complexo jogo de relações e inter-relações que deram origem aos ambientes explora- dos. O nível de entendimento, quando muito, aloca-se no resultado desse jogo, dessas relações, materializadas na forma de paisagem, vendida, pura e simplesmente como um produto turístico. A natureza-paisagem é vista, então, como um produto, a que o isolamento e ausência do homem agre- gam maior valor. Observa-se, assim, que a natureza observada e consumida no âmbito do Turismo é de fato a paisagem (Figura 1). Figura 1: Representação natureza-paisagem sob as vertentes naturalista e romântico presente no Turismo de Natureza e no Ecoturismo (A) Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul, Brasil. Arenito Aquidauana. (B) Serra no Amolar, Mato Grosso do Sul, Brasil. Formação Urucum. Autoria: Os autores Nesse exercício de discutir o Turismo de Natureza, a paisagem deve 17 Para Vale (2012, p. 104), o geossistema pode ser definido como “[...] um ‘palco’ no qual pode ser percebida a inter-relação sociedade-Natureza, e que pode ser mapeado, lido e compreendido pela ótica de um geógrafo”. Para Martins (2018), o conceito ressalta a importância da ação e dinâmica antrópica na alteração da paisagem. A relação e a integração dos elementos abióticos (solo, relevo, clima, hidrografia), bióticos (vegetação e animais) além das ações antrópicas, se inter-relacionam e mantém níveis de interdependência entre si. Como a paisagem é a representação física imediata da Natureza e recurso imprescindível para o turismo, em especial para o Turismo de Natureza, optou-se por compreender e aplicar o conceito de geossistema como transversal, viabilizando assim uma análise mais sistêmica, a qual congrega e dá os mesmos níveis de importância para a relação sociedade-Natureza. 168 ser compreendida como um sistema aberto, definido pelos elementos que o compõem como: o relevo, a hidrografia, a cobertura vegetal e outros componentes que mantém uma inter-relação com aspectos sociais. Nas pa- lavras de Verdum, Vieira e Pimentel (2016), a paisagem é um conceito com- plexo, que está relacionado a diversos aspectos – econômicos, culturais e ambientais –, os quais se encontram em permanente relação e movimento. No caso do Turismo, a paisagem é o principal aspecto responsável pela prá- tica da atividade, o seu recurso de maior importância, por ser um elemento motivador que indica ao turista o rompimento de sua rotina (Pires, 2013, Rodrigues, 2011; Lochmann e Panosso Netto, 2008). Nas palavras de Vieira (2008, p. 40): [...] a paisagem impõe-se como objecto de contemplação, como unidade panorâmica capaz de desencadear o desejo de usufruto, constituindo também objecto de consumo, potenciado por uma das actividades mais dinâmicas e insaciáveis deste início de tercei- ro milénio, que é o turismo. Como um produto qualquer, a natureza, na atividade turística, passa a ter maior significado ou demanda em grupos sociais sem possibilidade, em seu cotidiano, de manter relações diretas com áreas pouco antropiza- das, equilibradas devido à baixa alteração dos processos naturais. Assim, os grandes consumidores de natureza, mais particularmente, do Turismo de Natureza, são indivíduos, em sua maioria, urbanos-industriais, que buscam nessa prática incorporar ou difundir a concepção de natureza que permeia a sociedade atual, com ligações intrínsecas com aos movimentos filosóficos anteriormente comentados (o Naturalismo e o Romantismo) e com aspec- tos ambientais incorporados nas últimas quatro décadas, pela política, cul- tura, economia, educação e lazer. Dessa forma, os segmentos do Turismo que mais incorporam práticas turísticas ligadas ao Turismo de Natureza são, portanto, aqueles que ex- cluem o convívio direto com ambientes urbanos, os quais, muitas vezes, servem somente de aporte por meio do oferecimento de serviços de hos- pedagem, alimentação ou agenciamento, necessários para o seu desenvol- vimento. A oferta turística original, bem como, a potencialidade turística, resulta diretamente do ambiente natural e quase sempre de uma paisagem deslumbrante (Figura 2). 169 Figura 2: Representação da natureza-paisagem para o estabelecimento do Turismo de Natureza e do Ecoturismo, a racionalidade da apropriação Fonte: Governo de Mato Grosso do Sul (turismo.ms.gov.br). Acesso: 22 de agosto de 2021. Desse modo, não há como negar a importância da natureza para a atividade turística. No entanto, qual o significado real da expressão Turis- mo de Natureza? Quais são os segmentos do Turismo e as tipologias nele presentes? Por que há divergência clara e explícita nos termos e concei- tos utilizados para definir práticas turísticas ligadas a ambientes naturais conservados? Faz-se necessário responder a tais indagações, em estudos como este. Quaisquer críticas ou resoluções de problemas derivados da implementação do Turismo, e, por consequência o Turismo de Natureza em áreas naturais, devem estar apoiadas no entendimento claro e preciso desse termo. TURISMO DE NATUREZA E ECOTURISMO: DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS CONCEITUAIS A discussão ora proposta permanece impregnada de contradições e divergências e, mesmo a literatura específica, seja ela nacional ou interna- cional, muitas vezes não é objetiva, trazendo discordâncias entre conceitos e abordagens. Aspectos acadêmicos, mercadológicos, conservacionistas e de modismos acabam por se sobrepor, impossibilitando o fortalecimento e a determinação de conceitos que fundamentariam a análise dos condicio- nantes envolvendo a prática turística em áreas naturais conservadas e, por consequência, a proposição de ações para minimizar os impactos negativos hoje registrados. Martins e Silva (2018), ao constatarem essas divergências, ratificaram a hipótese de que o Turismo de Natureza é uma derivação do termo turismo na natureza, onde está a origem daquilo que se denomina 170 Turismo de Natureza e Ecoturismo. Para os autores, há um problema concei- tual em questão, sobretudo considerando o uso errôneo do termo Ecoturis- mo, seja no Brasil ou em outras partes do mundo. Martins (2018) constatou que a maioria das traduções vindas do inglês apresenta incongruências18. Termos como Ecoturismo, turismo brando, turismo de menor impacto, turismo ecológico, turismo ambiental, turismo de aventura, turismo sus- tentável, turismo alternativo e outros são utilizados, em muitos casos, como sinônimos, o que se constitui um equívoco. Para Martins (2018, p.77), “[...] muitas atividades turísticas possuem a Natureza como base de seu produto, mas nem sempre se preocupam em conservá-la”. Apropriados pelo merca- do turístico como instrumentos de marketing e pelas políticas públicas na forma de discursos desenvolvimentistas, esses termos, por repetição e sen- so comum, têm criado uma imagem distorcida da capacidade do Turismo de causar impactos negativos em seu ciclo de desenvolvimento, impossibi- litando a contestação e o avanço de uma crítica mais efetiva. Em alguns casos, o mercado turístico e o Estado, nas instâncias fede- ral, estadual e municipal, passam a defender que as atividades turísticas desenvolvidas sob esses rótulos se portam como uma categoria menos im- pactante e capaz de salvaguardar, preservar e conservar os patrimônios na- turais e socioculturais das comunidades receptoras, algo não permitido por atividades econômicas mais tradicionais como indústria e agropecuária. Tal condição não é verdadeira. Chega-se ao exagero e à ignorância de deno- minar-se as atividades turísticas, principalmente as ligadas à natureza, como indústria verde, indústria limpa ou indústria sem chaminés. Vale ressalvar que a atividade industrial não pode servir de analogia para a turística, que esse mito não deve e não pode continuar a ser difundido, seja em trabalhos acadêmicos, no mercado ou nas políticas públicas. Lemos (1999, p.67), ao abordar os mitos que envolvem o desenvolvimento do Turismo, apresenta, sobre o assunto, uma posição que cabe reproduzir neste momento: O Turismo não é uma indústria, como popularmente costuma-se dizer. Em que isto difere? Ora, ao compreender que o processo de produção em serviços possui características específicas em relação à indústria, entende-se o quanto é importante essa classificação. 18 Os autores apresentam um quadro com as definições e derivações do termo Turismo de Natureza e verificam de que maneira diferentes autores trabalharam o termo no idioma de origem, o conceito e as tipologias turísticas associadas. Os autores concluem que não há consenso, um mesmo termo é utilizado de diversas maneiras; “[d]e maneira geral, Turismo de Natureza ou de naturaliza são associados a valores conservacionistas, relação com a comunidade local e relação direta com espaços naturais protegidos” (MARTINS, SILVA, 2018, p. 497). 171 Da mesma maneira não se pode continuar apregoando a ideia de tu- rismo alternativo e Ecoturismo para toda e qualquer atividade turística en- volvendo produtos ligados à natureza e realizada, predominantemente, em ambientes naturais conservados. No Brasil, a exploração de patrimônios naturais e socioculturais para a implementação de atividades turísticas tem se demonstrado demasiada- mente voraz e efêmera. Aqui, registram-se diversos casos de comunidades receptoras de fluxo turístico com impactos ambientais intensos, mas, mes- mo assim, vinculadas a práticas turísticas, a rótulos conservacionistas e pre- servacionistas . As obras de Vasconcelos (1998), Rodrigues (1997a, 1997b, 1997c), Rodrigues (1999), Lemos (1999), Yázigi, Carlos e Cruz (1999) e Souza (2002), mesmo representando uma parcela ínfima das pesquisas produzidas sobre o desenvolvimento da atividade turística no Brasil, estão repletas de estudos que demonstram e apontam esses impactos. Apresentar um conceito que engloba as práticas turísticas que não se enquadram na perspectiva da conservação e da consciência ambiental, e que jamais deveriam ser nomeadas como Ecoturismo, é, ao nosso ver, uma agenda que deve ser priorizada. Não o fazer envolve apregoar muitas das concepções atuais, principalmente aquelas praticadas pelo mercado. Observa-se, de fato, a estruturação de um raciocínio que envolva: a compreensão das práticas mercadológicas; os segmentos de mercado en- volvidos; as potencialidades e as condições de atratividade de fluxo turísti- co das áreas exploradas; os produtos turísticos vendidos; e os impactos am- bientais presentes no ciclo de desenvolvimento da atividade turística. Para isso consideramos fundamental o entendimento do significado de segmen- to de mercado, tipologias turísticas e produtos turísticos, para dar subsídio aquilo que aqui denominamos Turismo de Natureza.. TURISMO DE NATUREZA E ECOTURISMO, A SEGMENTAÇÃO TURÍSTICA Um segmento de mercado pode ser caracterizado como um conjunto de consumidores com características muito semelhantes que geram uma demanda efetiva e, por consequência, ocasionam o surgimento de ativi- dades e produtos específicos direcionados a saciar desejos e ansiedades latentes. Os segmentos podem ser identificados a partir de características socioculturais, poder de compra, classe social, idade, atitudes e práticas de consumo. 172 Assim, a segmentação do mercado turístico deve ser encarada sob a perspectiva das características da demanda e da oferta, seja ela original ou agregada. Ela diz respeito ao perfil do turista e às características dos produ- tos vendidos e consumidos durante as relações mantidas entre esses e os prestadores de serviços, incluindo, muitas vezes, padrões comportamentais e dispositivos normatizadores de conduta. A segmentação turística está condicionada aos serviços turísticos, às atrações, aos acessos e às facilidades disponibilizadas aos turistas, em con- junto ou individualmente; refere-se aos arranjos necessários para o desen- volvimento do Turismo. Como exemplo podemos citar o turismo de negó- cios, o turismo GLS, o turismo da melhor idade, o Ecoturismo e o Turismo de Natureza, com uma diferença primordial entre os dois últimos, que será explicada mais adiante. A tipologia turística diz respeito aos tipos de turismos, às categorias de Turismo que se desenvolvem a partir de um segmento. Ela corresponde a um sistema de classificação que permite estabelecer traços e características visando identificar as atividades predominantemente desenvolvidas na prá- tica do Turismo. Dessa maneira, dentro de um mesmo segmento turístico, pode haver duas ou mais tipologias turísticas envolvidas, condição muito comum quando se analisa polos receptores de fluxo turístico. É pertinente citar, por exemplo: turismo gastronômico, turismo rural, turismo cultural, turismo de saúde, turismo náutico, turismo religioso, turismo de aventura, turismo de contemplação, turismo científico e outros. Os produtos turísticos, por sua vez, estão diretamente agregados às tipologias turísticas e correspondem àquilo que é negociado pelo mercado e adquirido pelo turista durante a realização das atividades turísticas. For- mados por elementos tangíveis e intangíveis, os produtos turísticos ganham significância mercadológica, principalmente monetária, a partir do turista, pois são produzidos e formatados como base no perfil do turista que, ge- ralmente, procura uma determinada tipologia. Em última instância, os pro- dutos turísticos correspondem aos elementos utilizados pelo mercado para saciar os desejos dos turistas e são responsáveis, em muitos casos, pela motivação e deslocamento desses, das se associa ao movimento ampliado do conhe- cimento, que ocorre, a partir da convergência epistemológica da Biologia, da Ecologia biocenótica, do Estruturalismo linguístico, da Teoria dos Con- juntos e da Análise Sistêmica. Nesse momento, chegam ao Brasil os textos de Sotchava e de Ber- trand, que se tornam referências aos estudos de Geografia Física no país. A PAISAGEM COMO UM SISTEMA – O GEOSSISTEMA Através de publicações do Instituto de Geografia da USP, chegam ao Brasil os textos de Bertrand (1972) e de Sotchava (1977), com suas proposi- ções de análise integrada. As influências dessas referências são amplamen- te reconhecidas e ampliadas na Geografia brasileira, com as análises pro- postas, a partir desta perspectiva, por Christofoletti (1979) e por Monteiro (2001). O que se discutiu, avaliou, criticou ou foi apropriado, sobre geossis- tema, como possibilidade analítica para a Geografia Física, foi expressivo no Brasil. Aqui, não se pretende discutir minuciosamente esses conceitos e as controvérsias, que se apresentam entre os diferentes autores. Trazemos considerações, associando conceito e método analítico e sua atualidade. Importa, no entanto, fazer uma primeira distinção: para Sotchava (1977) prioritariamente, e, no Brasil, para Christofoletti (1979), o conceito de ge- ossitema se restringe aos estudos da natureza (Geografia Física); para Ber- trand (1972) e para Monteiro (2001), esse é um conceito de articulação en- tre a natureza e a sociedade.que se expressa mais ampliado. Cabe dizer, também, que geossistema é uma unidade espacial, que aborda uma parcela do espaço natural ou, mesmo, geográfico, compreen- dido como conexão de constituintes naturais ou conexão de constituintes naturais e sociais. Para além desta dupla forma de conceber sistema, à épo- ca, o que está na origem dessa proposição é a análise da funcionalidade, explicitada na interação entre os elementos constituintes do sistema, a par- tir da dinâmica processual, que o caracteriza. 23 Em se constituindo uma unidade espacial, um geossistema expressa uma dimensão específica, conforme hierarquizaram Sotchava e Bertrand. No caso de Bertrand, constituía uma abordagem de escala intermediária entre as escalas pequenas e grandes, que seria a escala passível de analisar as ações antrópicas. Em ambos os modelos, o geossistema se constituía de um conjunto de espaços com funcionalidades distintas, porém em conexão com dimensões escalares mais amplas. Isso permitiria a construção de uma explicação sobre um geótopo, por exemplo, ou, num contexto mais amplo, sobre uma geofácie ou, mesmo, sobre um geossistema. Por outro lado, é sempre necessário dizer que, na origem, o conceito de geossistema constituiu uma dimensão escalar da paisagem, portanto, geossistema seria a paisagem analisada numa escala específica, em seu funcionamento. Este conceito foi se descolando do conceito de paisagem e, tomado fora do corpo analítico das proposições metodológicas, tornou- -se um conceito operacional, sem, necessariamente, ser apresentado como uma leitura de paisagem. Se, nas obras dos anos de 1960, tal era a compreensão, do geossiste- ma como uma escala de paisagem passível de ser abordada pela análise sistêmica, para fazê-la é necessário resgatar a crítica a essa proposição, so- bretudo, a crítica produzida pelo próprio Bertrand nos anos 1990. Bertrand (1995) vai expressar uma (re)leitura de suas proposições dos anos 1960, em que distingue paisagem de geossistema. Informa, a partir de novas referências, fundadas, sobretudo, no princípio da complexidade (MORIN, 1990), que paisagem é um produto social, elaborada pela socie- dade no contexto dos quadros tecnológicos e culturais de sua produção. A paisagem é uma análise social, que incorpora o natural em suas finalidades. Por outro lado, tal ideia resgata a concepção de geossistema nas suas origens e, em comparação com a paisagem, assim se expressa: [...] o geossistema e o ecossistema são conceitos diretamente quantitativos fundados sobre medidas e sobre o estabelecimen- to de balanços energéticos; a paisagem é intrinsicamente ligada a ideia de qualidade que se exprime a partir de um sistema de valores sociais (ainda que alguns desses valores possam ser quan- tificados). O geossistema e, em menor dimensão, o ecossistema são conceitos espaciais (corológicos) enquanto a paisagem expri- me primeiramente um esquema de funcionamento. A paisagem é um processo, produto do tempo e mais precisamente da história social. (BERTRAND, 1995, p. 100-101, tradução livre) 24 Aprofunda, o autor, a concepção de paisagem sobre outras bases te- óricas e, nesse contexto, acrescenta severas críticas, quando escreve que a maior parte das interpretações, a partir do conceito de paisagem, é dualista: ora a paisagem é interpretada como de natureza subjetiva, sendo definida como um elemento cultural, ora é concebida como um objeto natural, ou seja, como uma realidade existente, independente da observação e do ob- servador, não sendo outra coisa senão uma porção do espaço (BERTRAND, 1995). Essa nova leitura de paisagem está sustentada no princípio da com- plexidade, de Morin (1990). Esta abordagem, por vezes, considerada um novo paradigma, vai, gradativamente, incorporando-se ao movimento de construção do conhecimento e tem, como proposição, avaliar a construção científica da Modernidade, questionando seu paradigma redutor e simpli- ficador. A complexidade se expressa como tudo aquilo que é tecido junto, portanto, a disjunção não a favorece, ainda que tenha promovido inúme- ras descobertas científicas e a possibilidade de entendimento do mundo na sua complexidade; sobretudo dimensionando a separação do sujeito e do objeto. A argumentação de Morin (1990), para explicitar a não separa- ção entre sujeito-objeto, apoia-se na física das pequenas partículas e em suas análises, em que fica demonstrada a indissociabilidade do sujeito e do objeto de investigação. Da mesma forma, faz referência à cibernética, à compreensão sistêmica e às redes e conexões, para demonstrar essa não separação. DIANTE DESTES ARGUMENTOS, O QUE SE CONCEBE COMO PAI- SAGEM E QUE PAISAGEM ESTUDARIA A “GEOGRAFIA FÍSICA” OU OS ESTUDOS DA NATUREZA? Centralizo, neste item, a concepção de paisagem, que se constitui ins- trumento de análise na “Geografia Física”. Diria, de forma ampla, que a paisagem, estudada por aqueles que se dedicam aos estudos da natureza, é entendida como: I. Objetiva e externa ao sujeito (pesquisador), conforme compreensão advinda da Modernidade e, nela, do contexto da ciência positiva; II. Constituída de um conjunto de elementos em conexão, hoje, deno- 25 minada sistema, isto é, contemporaneamente, a paisagem seria um sistema ou sistêmica; III. Expressa uma funcionalidade, que deriva da ação de processos do presente ( um sistemismo atemporal) ou que é resultado de um pro- cesso histórico de constituição, através do movimento e da articu- lação de processos, que se diferenciam, ao longo do tempo, e que registram mudanças, as quais ficam simultaneamente registradas nas suas formas; IV. A paisagem é corológica, expressando-se numa forma, que pode ser delimita, no espaço, pela sua configuração; V. A paisagem é conceito e é objeto e, ao mesmo tempo, é instrumen- to analítico, podendo ser concebida pela Cartografia ou por outras formas de representação. A partir desta breve nominação de elementos caracterizadores da pai- sagem, na continuidade, trago o exemplo dos estudos de paisagem, cen- trados na Ecologia da paisagem. Por que esse resgate? Pelo fato de ter sur- gido, a partir dos anos 1970, uma nova ecologia, a Ecologia de Paisagem, e pelo fato, paradoxal, de que, quando a Ecologia de Paisagem assume um papel importante, enquanto caminho interpretativo da natureza e da socie- dade, fazendo, nesse percurso, um diálogo com a Geografia, a Geografia busca, nessa Ecologia, um caminho analítico para suprir sua compartimen- tação. O embasamento dos estudos de Ecologia áreas emissoras para as receptoras. O turista dificilmente compreende o significado de segmento ou mesmo de tipologia, mas tem plena consciência do produto turístico, pois é isso que ele compra para saciar seus desejos. A diferença entre segmento turístico e tipologia turística, portanto, reside na capacidade do primeiro de agregar, a partir de condicionantes pré-estabelecidos, atividades que caracterizam uma ou mais tipologias, as quais, por sua vez, são materializadas a partir da formatação de produtos 173 específicos e direcionados ao perfil do turista daquele seguimento. A cla- reza dessas diferenças nos possibilita tratar do tema central deste item: o entendimento daquilo que se considera Turismo de Natureza e Ecoturismo. Essa discussão permite afirmar que Ecoturismo é um segmento de mercado e não uma tipologia turística como amplamente divulgado, prin- cipalmente pelo mercado turístico. Como segmento, ele é capaz de agre- gar diversas tipologias, inclusive aquelas que não tem como matéria-prima básica a natureza, ou áreas naturais que não reflitam uma condição tão primitiva. Embasa essa posição a definição oficial brasileira, criada em 1994 pela EMBRATUR conjuntamente com o IBAMA, que denomina Ecoturismo: Um segmento da atividade turística que utiliza forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpre- tação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações en- volvidas (BRASIL-EMBRATUR/IBAMA, 1994, p. 19) Na definição aparecem subentendidos os condicionantes fundamen- tais para sua efetivação: • O interesse por patrimônios socioculturais e naturais, e a implemen- tação de ações que contribuam para sua preservação e conservação; • O desenvolvimento de produtos turísticos que valorizem os patri- mônios naturais e culturais das comunidades receptoras; • A geração de benefícios à população local a longo prazo; • A possibilidade de educação e estudo por meio da interpretação e inter-relação com os ambientes explorados; • A ocorrência de pouquíssimo impacto ambiental, envolvendo, as- sim, em sua prática, ética e responsabilidade de todos os envolvidos no processo; • A necessidade da criação de um sistema de monitoramento contí- nuo e gestão participativa; • O baixo fluxo turístico, ou seja, ser praticado por pequenos grupos de pessoas. Esses argumentos ganham credibilidade quando Kinker (2002, p. 18- 19) destaca que, para ser chamada de Ecoturismo, a atividade deve res- peitar três fatores básicos: a conservação do ambiente visitado, seja ele natural ou cultural; a conscientização ambiental, tanto do turista como da comunidade receptora; e o desenvolvimento local e regional integrados. 174 Fatores defendidos também por Salvati (2002) e por outros autores que se dedicaram profundamente ao tema Ecoturismo (PIRES, 2002, CEBALLOS- -LASCURÁIN, 1996; FENNEL, 2002; BRASIL, 1994). Nota-se que Ecoturismo abordado dessa forma não faz alusão espe- cífica à natureza e sim ao patrimônio natural e cultural. Ele dispõe sobre ambiente e, nesse caso, considera aspectos socioculturais e naturais na for- mação das características do local que será utilizado para sua prática, sem especificar a qualidade ambiental, ou seja, sem estipular características mí- nimas ou máximas de impactos ambientais mas, sim, o papel da atividade no processo de conservação dos patrimônios existentes e o desenvolvimen- to gerado a partir dele. Ele inclui condicionantes para sua existência e em nenhum momento remete à necessidade de desenvolvimento de produtos turísticos específicos de/ou em áreas naturais. É verdade que essa definição não é aceita por autores como Fennel (2002), Wearing e Neil (2001), Western (1995) e McKerher (2002), cujas abordagens salientam veementemente que a base do Ecoturismo são os aspectos exclusivos da natureza e a possibilidade de sua conservação por meio de práticas turísticas menos predatórias e impactantes. Como ilustração e contraponto cabe citar a definição de Fennel (2002, p. 52-53): O ecoturismo é uma forma sustentável de turismo baseado nos recursos naturais, que focaliza principalmente a experiência e o aprendizado sobre a natureza; é gerido eticamente para manter um baixo impacto; é não-predatório e localmente orientado (con- trole, benefícios e escala). Ocorre tipicamente em áreas naturais, e deve contribuir para a conservação ou preservação destas). Observamos que a construção dos conceitos, Ecoturismo e Turismo de Natureza, reside na abordagem de aspectos que vão além daqueles tipicamente naturais, na inclusão ou exclusão de segmentos e tipologias condicionados à existência de natureza em sua condição primitiva ou muito conservada e a valorização dos patrimônios socioculturais das comunida- des receptoras. Como se acredita que a natureza só ganha significância a partir de concepções humanas, seria incoerente excluir os aspectos socio- culturais, sejam eles das comunidades receptoras ou dos turistas, condição destacada por Faria (2002 p.06): Quando separadas, natureza e sociedade perdem a sua materiali- dade e também seus significados. A história passa a ser interpreta- da sem a materialidade da ação, sem um espaço real. E a natureza transforma-se em uma invenção do pensamento e um conceito 175 abstrato. Ambos submetidos às conveniências do discurso do mo- mento. A atividade turística, com ou sem o prefixo eco, envolve valores sociais que se materializam no cotidiano de sua prática e influenciam os locais onde se realiza, assim como o contrário também ocorre. As ideias de desenvol- vimento regional, experiência, aprendizado, conservação e preservação, sustentabilidade e consciência ambientalista só têm validade e possibili- dade a partir do entendimento de que há um processo de inter-relação e dependência entre os aspectos naturais e sociais – condição discutida nos capítulos iniciais deste trabalho. Pires (2005, p. 484), em texto cujo teor aborda o Ecoturismo sob di- versas perspectivas, corrobora e fundamenta essa discussão ao apresentar as bases que possibilitaram a elaboração da proposta do conceito oficial brasileiro: Assim, a partir do reconhecimento de que o ecoturismo implica- va, antes de tudo, a opção por ambientes naturais íntegros e por manifestações culturais autênticas, mas também a afirmação dos pressupostos de responsabilidade ambiental, de compromissos conservacionistas e de envolvimento das populações locais, foi se consolidando uma base conceitual assentada em um conjunto de ideais que se consubstanciaram no que atualmente se difunde como princípios, componentes ou características do ecoturismo. Ou, ainda, como afirmam Wearing e Neil (2001, p. 05): Trata-se de uma área especializada do turismo que inclui viagens para áreas naturais ou onde a presença humana é mínima, em que o ecoturista envolvido na experiência externa tenha uma motiva- ção explicita de satisfazer sua necessidade por educação e cons- ciência ambiental, social e/ou cultural por meio de visita à área e vivência nela. Nesse contexto, considerar os aspectos socioculturais das áreas onde se desenvolve o Ecoturismo é, no mínimo, coerente com a definição oficial regulamentada na Política Nacional de Ecoturismo ao vislumbrar as possi- bilidades que a atividade deveria, teoricamente, proporcionar. Nas palavras de Serrano e Paes-Luchiari (2005, p. 505): Pensar o ecoturismo pede que se vá além das práticas e proposi- ções dirigidas exclusivamente “as viagens à natureza, para guardar coerência com sua definição “oficial” no Brasil. 176 A discussão e o conceito permitem inferir que pouquíssimos são os locais onde se prática Ecoturismo no Brasil. Da mesma forma, se o quadro que motivou a elaboração da Política Nacional de Ecoturismo permanece, a estruturação de um segmento turístico capaz de fomentar equidade social, desenvolvimento regional e equilíbrio ecológico ainda está muito distante. A condição de Paisagem deriva da cons- trução geográfica de Troll (1982). A partir de suas concepções, a Ecologia analisa a paisagem, como a expressão da relação entre solo e uso, enfati- zando a funcionalidade ecossistêmica, mas buscando o entendimento da forma e de sua configuração, amparando-se nas categorias espaciais de localização, de extensão e de distribuição – categorias pouco evidenciadas nas análises ecológicas clássicas. Ou seja, o conceito de paisagem sempre expressou uma extensão, uma escala; classicamente, a dimensão que a vis- ta alcança (hoje, com os inúmeros instrumentos técnicos de observação, essa dimensão de extensão pode ser questionada ou ressignificada). Por outro lado, o conceito de ecossistema, na origem, não expressa extensão, especificamente, pois, na medida em que busca entender a relação do ser vivo com o meio físico, a questão da escala fica obscurecida e a da funcio- nalidade, valorizada. Um ecossistema poderá ser o planeta Terra, um mar ou uma folha de alguma espécie vegetal. Em diálogo com a Ecologia, Tricart (1982) assim se refere: 26 A paisagem é entendida “... como uma tradução concreta e espacial de um ecossistema. No funcionamento da paisagem e do ecossistema, suas evoluções se confundem” (TRICART, 1982, p. 473), admitindo que, sob esta perspectiva, poderiam ser introduzidas as intervenções humanas. Tricart et al (1979) e Tricart (1982), ao fazer esta conexão, indica duas di- mensões, que promoveram a aproximação entre a Ecologia e a Geografia: de um lado, a espacialidade, definida pela paisagem, e, de outro, o enten- dimento da funcionalidade, decifrada pela análise ecológica. Esse diálogo se expressa de outra forma na Ecologia da paisagem: A paisagem, conforme Huggett e Perkins (2004), na perspectiva ecológica, se constitui de arranjos de unidades de uso da terra. Analiticamente, os ecólogos buscam padrões, considerando como critério a hom*ogeneidade interna de uma paisagem, em relação à heterogeneidade externa. Sob esta perspectiva, consideram como elementos: formas de uso, tipo de solo, cobertura vegetal, uso da terra, entre outros. O objetivo da análise está centrado na identifi- cação de padrões (áreas hom*ogêneas), de corredores (espaços de transição e de conexão), da Matrix (matriz), ou seja, do ecossistema de contexto. Em termos analíticos, esta concepção busca revelar a funcionalidade pela diferenciação, entre áreas hom*ogêneas e he- terogêneas. Por exemplo, a cobertura da terra original x uso, em um determinado espaço, pode formar um mosaico heterogêneo. Este, por sua vez, revela transformações, na funcionalidade, na medida em que a heterogeneidade rompe com a matriz original, detentora do que seriam a funcionalidade e as formas originais. (SUERTEGARAY, 2019, p. 162) Tomando outro exemplo, na análise geomorfológica, a paisagem é concebida como um conjunto hom*ogêneo de formas, definidas através de métricas, que, combinadas, formam redes ou mosaicos, podendo ser, ain- da, compreendida como um conjunto de formas (Compartimentação da/do Paisagem/Relevo, de Ab’Saber (1969)), produto de funcionalidades (dinâmi- cas) temporal e espacial, ou seja, que busca o entendimento de processos do presente e do passado (Estrutura Superficial e Fisiologia da Paisagem, de Ab’Saber (1969). A paisagem, assim compreendida, revela uma estrutu- ra constituída da identidade entre elementos e de funcionalidade comuns (conexão) entre um conjunto de feições, e apresenta hom*ogeneidade e movimento no tempo. Estes dois exemplos, comparando com o que foi tratado como paisa- gem, inicialmente, no âmbito da Geografia, e com a concepção de Bertand, 27 expressa através de uma paisagem sustentada no princípio da complexi- dade de Morin (1990), permitem-nos alguma reflexão sobre que paisagem estudaria a “Geografia Física”? Consideramos alguns constituintes: • A paisagem é a expressão do presente, podendo ser aquilo que a vista alcança; • A paisagem é a expressão conjunta de aspectos, relativos à nature- za; • A natureza (objeto) é concebida como externa ao sujeito (pesquisa- dor); • A paisagem é exterior (o que é visto pela janela, metaforicamente); • A paisagem se expressa, enquanto forma, portanto pode ser enten- dida como a materialidade (o visível); • A paisagem, do ponto de vista da sua análise, expressa uma funcio- nalidade, portanto é concebida como sistema. A paisagem é a expressão de uma temporalidade num dado momento. Aqui há uma interpretação que confunde a paisagem com o conceito de paisagem. A paisagem está em constante movimento e, este entendimento já estava manifesto nos clássicos: Formas do relevo, estado da atmosfera e cursos dos rios, obras dos homens, se inscrevem em cada ponto da paisagem, enquanto expressão fisionômica de sua combinação. Esta imagem é cam- biante. A imperceptível descida de cada grão de solo ao longo da encosta por efeito da gravidade ou as enxurradas modelam o perfil da paisagem. Sem dúvida, a paisagem guarda sua individualidade dado uma aparente permanência à escala de nossa observação. E deve-a às relações sobre as quais descansa. (SORRE, 2003) No contraponto, pode-se dizer que a paisagem é a expressão da in- terconexão da natureza com a sociedade; hoje, de difícil separação. O ad- vento do Antropoceno, ainda que em debate em relação à adesão à escala geológica, não pode mais ser ignorado. Formas e depósitos são, desde tempos, a expressão da produção da natureza, transformada em segunda natureza. O Antropoceno é a expressão materializada desta conexão. 28 A natureza (objeto) não é externa ao sujeito (pesquisador); sua análise implica seleções e arranjos analíticos, que resultam da escolha do sujeito, individual e socialmente falando. A questão da relação sujeito x objeto não é nova e está presente na filosofia e nas ciências humanas há algum tempo. No século XX, será a Física, através de seus estudos no campo das micro- partículas, que vai evidenciar e difundir esta condição fundamental do fazer científico. Entretanto, essa indissociabilidade está presente nos primórdios da Geografia, a exemplo de Humbold, que escreveu: A tentativa de decompor em seus diversos elementos a magia do mundo físico está cheia de riscos, porque o caráter fundamental de uma paisagem e de qualquer cenário importante da Natureza deriva da simultaneidade de ideias e de sentimentos que suscita no observador. O poder da Natureza se manifesta, por assim dizer, na conexão de impressões, na unidade de emoções sentimentos que se produzem, de certo modo, de uma só vez. Se queremos detectar suas origens parciais, é preciso recuar por meio da análise à individualidade das formas e à diversidade das forças. (HUMBOL- DT, 1982, p. 137) A paisagem é, ao mesmo tempo, exterior e interior, materialidade e imaterialidade. Mesmo considerada objetiva, sua leitura e/ou explicação depende das condições objetivas e das escolhas subjetivas e circunstan- ciadas do pesquisador. Dito de outra forma, a paisagem é materialidade e representação, portanto, é material e imaterial. A paisagem é forma, é processo, é transformação e é representação (conceito). A paisagem é mais comumente concebida, enquanto forma, e caberia ser descrita. Entretanto, só para registrar as concepções mais atuais no campo da Geografia (Física), ela é, ao mesmo tempo, forma, processo, transformação e representação/conceito. A paisagem sistêmica funcional é uma forma de representar a paisa- gem. Anteriormente, a paisagem foi forma, materialidade externa, e re- presentava a natureza caótica. Na continuidade, a paisagem representou a ordem e a beleza, a paisagem-jardim (ALIATA; SILVESTRE, 1994). Hoje, é compreendida como um sistema funcional ou sistema complexo. A paisa- gem funcional é descrita, através de seus elementos e dos processos, que lhe dão ânimo. A paisagem “natural”, numa compreensão sistêmica com- plexa, a partir da concepção de natureza, em Maturana e Varela (1993) e em 29 Morin (1990), é auto-eco-re-organizacional, ou seja, se autoproduz, apre- senta uma funcionalidade (eco) e está em constante movimento Esse movi- mento, por sua vez, é contraditório e é a expressão da ordem e do caos, ou da desordem. Na lógica complexa, o sistema é aberto e sua transformação provém dessa desordem. A ordem é o padrão; a desordem é o processo de transformação (MORIN, 1990). O conceito de paisagem é uma representação e uma possibilidade analítica; não é a paisagem. E sistemas complexos não permitem um fecha- mento, logo sempre há um grau de indeterminação na leitura/explicação de um estudo de paisagem, que o pesquisador não capta. A paisagem é a expressão do presente, embora seus elementos pos- sam indicar uma simultaneidade de tempos (sejam longos, sejam curtos). A paisagem é uma expressão do presente, muito embora seus elementos, ao serem identificados, permitam perceber que há vestígios, formas do passa- do, em convivência com os arranjos atuais das paisagens. A paisagem, como aquilo que a vista alcança, considerando as novas tecnologias de observação espacial, seriam paisagens ou imagens de um determinado espaço? Os mapas representam paisagens ou são a melhor forma de representar paisagens? Excluindo os antigos mapas pictóricos, a evolução da Cartografia e o grau de abstração das representações atuais, via SIG (pontos, linhas e áreas), expressam a dificuldade de representar a paisagem. Nos mapas atuais, o polígono representa uma unidade de pai- sagem. Trata-se de uma abstração matemática, que elimina a arte, o mo- vimento, a visão integrada dos elementos da representação da paisagem. EXEMPLIFICANDO: UM ESTUDO DA PAISAGEM Nesta última seção, trazemos, como exemplificação, um recente es- tudo, a partir do conceito de paisagem. O que será exposto diz respeito a uma pesquisa interdisciplinar, que se refere à Geologia, à Geomorfologia, à Biogeografia, à Hidrogeografia, à Botânica, à Pedologia e à Geografia. Foi elaborada a partir de um trabalho de campo em uma parcela do bioma Caatinga. O Objetivo foi de explicitar, de forma integra- da, as diferentes paisagens que caracterizam o transecto escolhido para ser analisado. Metodologicamente, o ponto de partida foi a observação da paisagem e a subsequente descrição dos elemen- tos selecionados para sua análise, tomando como referência a ob- 30 servação em campo, em confronto com as pesquisas já elabora- das... (SOUZA et al., 2019, p. 71) Interessava, aos pesquisadores envolvidos na pesquisa, compreender: [...] quais os condicionamentos físicos/naturais, que, associados, explicam a presença, na Chapada do Araripe, de uma vertente seca, no estado de Pernambuco (PE), em contraposição a uma ver- tente úmida, no estado do Ceará (CE), configurando-se, neste úl- timo estado, uma paisagem singular, no semiárido brasileiro e no bioma Caatinga, reconhecida como Brejo de Altitude, localizada na região denominada Cariris Novos. Mais especificamente, o ob- jetivo desta investigação foi o de estabelecer conexões entre di- ferentes constituintes naturais e explicitar a origem das diferentes paisagens que conformam a área de estudo. (SOUZA et al., 2019, p. 71-72) De maneira sintética, trazemos aqui, a representação final desta análise (Figura 1), que expressa, em forma de representação, as interações entre os diferentes elementos da paisagem, conforme descrição sucinta, registrada na continuidade. Figura 1 – Síntese das unidades de pai- sagem identificadas na Chapada do Ara- ripe Fonte: ilustração ela- borada por Rafael A. Xavier (2019), com fotos do acervo pes- soal de Rubens T. de Queiroz (junho de 2019) 31 Ao analisar a representação do transecto das unidades identificadas no estudo, observa-se um seccionamento em cinco unidades de paisagem: mata seca, cerrado, vegetação antropizada, mata úmida e mata úmida de encosta. A vertente úmida é denominada brejo (áreas úmidas). No conjun- to, enfatiza-se o contraste do transecto, em relação à vertente seca (S) e a outra vertente úmida (N). A explicação trazida é de que essa primeira dife- renciação, vertente seca e vertente úmida, vincula-se: [...] de um lado, há uma estrutura sedimentar soerguida, indicando processos de basculamento, com suave inclinação para o senti- do SO NE, no lado do Ceará, e, de outro lado, as condições posicionais das vertentes, em relação à circulação atmosférica, mais especificamente, a ação do vento (barlavento-sotavento). Estes constituem os fenômenos fundantes da circulação de água, sobretudo a subterrânea, e promovem uma presença abundante de fontes d’água, na vertente a barlavento, resultando em caracte- rísticas diferenciadas de constituição de solos e de cobertura vege- tal (Mata úmida), em relação à vertente oposta, caracterizada pela presença de Caatinga e da vegetação chamada Carrasco (Mata seca). Tal atributo adiciona mais complexidade à ocorrência dos Brejos existentes, no semiárido brasileiro, indo além dos condicionantes pluviométricos, relacionados à topografia e à altitude locais. Em outras palavras, as áreas úmidas (Brejos) da Chapada do Araripe e sua correspondente cobertura vegetal (Cerradão e, principalmen- te, Mata Úmida) têm sua gênese diretamente ligada ao controle hidrogeológico, em que a presença da água subsuperficial é de- terminada pela formação de uma camada semi-impermeável de rochas. A formação desses Brejos é consequência da maior dispo- nibilidade hídrica que, por sua vez, promove uma forma diferencia- da de ocupação e de uso da terra, expressa na constituição formal da paisagem. (SOUZA et al., 2019, p. 88-89) Esta condição de seca e de maior umidade, de um e de outro lado da chapada, permite compreender as variabilidades da cobertura de solo e da vegetação, configurando-se, a paisagem, neste transecto, uma expressão fenomênica da maior ou menor presença de água em localidades, como nos brejos do Semiárido do Nordeste. Ao final, a pesquisa aponta para a seguinte consideração: 32 [...] a Chapada do Araripe foi enquadrada como Brejo de altitu- de e de encosta. De altitude, devido à influência dos quase 1000 metros, na circulação atmosférica local, e de encosta, por existir um condicionamento lito-estrutural, que direciona a maior parte do fluxo subterrâneo para o lado do Estado do Ceará, permitindo a existência de uma Mata Úmida de Encosta”. (SOUZA et al., 2019, p. 93) A breve síntese dessa pesquisa é trazida, aqui, com duplo objetivo. De um lado, para apresentar, a partir de um estudo recente, que toma, como referência, o conceito de paisagem num contexto explicativo interdiscipli- nar, a ampliação da complexidade presente no brejo em estudo. Nesse sen- tido, a perspectiva adotada busca explicar a diferenciação das paisagens, em particular, de um lado e de outro da Chapada do Araripe (CE), num tran- secto de 50 km, considerando a dinâmica ou funcionalidade natural, que permitiu essa diferenciação. O resultado dessa atividade interdisciplinar en- globa a estrutura geológica, os solos, a circulação subsuperficial das águas e a direção dos ventos, conforme a circulação atmosférica local, ampliando, com isso, o entendimento sobre este brejo nas suas vertentes úmida e seca. O outro objetivo é demonstrar uma possibilidade de estudo de paisa- gem, através de um transecto, que foi expresso, de forma gráfica, permitin- do a visualização das interconexões, favorecendo, com isso, uma expressão de síntese e de integração dos elementos da paisagem. Essa forma de representação, quando da análise da paisagem, quer parecer que seria mais ilustrativa do que aquela, comumente representada, sobretudo, nas cartografias digitais, em que a simplificação transforma a paisagem num espaço hom*ogêneo, revelado por um de seus constituintes, dominantemente, a cobertura vegetal, representada pela delimitação de sua área de abrangência (critério de hom*ogeneidade). Ainda assim, essa, ou qualquer outra paisagem, é sempre a expressão de uma dinâmica complexa, que, segundo Morin (1990), estará sempre se reconstituindo e cuja transformação será decorrência da desordem em de- terminadas condições, promovendo um processo de transfiguração para outra reordenação. A desordem evidenciada no transecto está mais expres- sivamente representada no setor central do topo da Chapada do Araripe, identificada como uma unidade de paisagem de vegetação antropizada. Essa representa a área de uso mais intenso do solo, configurando-se em uma unidade com vegetação campestre ou herbácea, expressão de sua transfiguração original, pelo uso da terra. 33 CONSIDERAÇÕES FINAIS As considerações aqui expostas buscam explicitar, ainda que de forma sintética, o sentido e as formas de olhar a paisagem na “Geografia Física”. Esse olhar, e a análise resultante, expressa compreensões distintas, inter- pretações distintas. Sendo assim, é possível compreender que a paisagem, na sua análise e na sua conceituação, é produto da interação sujeito-objeto. Toda análise da paisagem indica uma intencionalidade; associa-se a obje- tivos. Historicamente, isso se revela na paisagem, vinculada à perspectiva geométrica renascentista; vinculada ao Romantismo, como expressão de harmonia e de beleza; vinculada ao pragmatismo técnico-científico moder- no, como espaço de recursos naturais de maior ou menor acesso; vinculada à paisagem funcional, como instrumento de gestão; e vinculada à paisa- gem, como produção e condição de existência, historicamente constituída, como revela Abreu (2017): A paisagem emerge com o Homem. Ela influenciará seu psiquismo no processo de aquisição de maior consciência de si mesmo, como indivíduo e como grupo. A paisagem é presença antiga na cultura humana e nasce com o processo de produção do ecúmeno, com o qual provavelmente se confunde nos primórdios. (ABREU, 2017, p. 145) A paisagem é produto da relação do ser humano com a natureza. Desde os seus primórdios, paisagem é natureza autoproduzida e produção social da natureza, conexa e concomitantemente; é um produto social, expressão da mediação do ser humano, socialmente posto, com a natureza que o en- volve e da qual faz parte. É materialidade, imaterialidade, instantaneidade e movimento. REFERÊNCIAS ABREU, A. A. Significados semânticos da paisagem: paisaginário, paisageria, pai- sagelogia. Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, v. 33, p. 144-156, 2017. AB’SABER, A. N. Um conceito de geomorfologiaa serviço das pesquisas sobre o Quaternário. Geomorfologia, São Paulo, n. 18, p. 1-23, 1969. ALIATA, F.; SILVESTRI, G. El paisage em el arte y las ciencias humanas. Buenos 34 Aires: Centro Editor de América Latina, 1994. BERTRAND, G. La ciência del paisaje una ciência diagonal. In: MENDOZA, G.; JI- MÉNEZ, J. M.; CANTERO, N. O. El pensamiento geográfico. Madrid: Alianza Editorial S. A., 1982. p.465-470 BERTRAND,G. 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Mercator, Fortaleza, v. 6, n.11, p. 71-78, 2007. 36 CONTRIBUTO DA GEOGRAFIA PARA OS ESTUDOS DA PAISAGEM EM PORTUGAL António Vieira INTRODUÇÃO O desenvolvimento dos estudos da paisagem em Portugal teve um significativo contributo da Geografia que, acompanhando os impulsos das escolas geográficas europeias que inicialmente influenciaram o desenvol- vimento desta ciência, foram afirmando, desde o século XIX e inícios do século XX, a paisagem como seu objeto preferencial de pesquisa. Ainda que o interesse pelo seu estudo tenha “arrefecido” a partir de meados do século XX, a paisagem veio a ressurgir, novamente, nas últimas décadas desse século, não só como objeto de estudo da Geografia, mas também de outras ciências. A este respeito, Medeiros (2001), introduzindo a tradução de um texto de Orlando Ribeiro dedicado à paisagem (Ribeiro, 1989), referia que “se pode afirmar que a paisagem está na moda, melhor dizendo, voltou a estar na moda” (pág. 27). Com efeito, e ainda que o seu estudo seja “tão antigo como a própria geografia”(idem, pág. 27), a conjuntura económica, social e mesmo cientí- fica que se seguiu à segunda guerra mundial conduziu a uma “decadência dos estudos sobre paisagens” (Salgueiro, 2001, pág. 43), marcando, tam- bém em Portugal, uma redução drástica da produção científica em torno desta temática, apenas retomado nas últimas décadas do século XX, tal- vez impulsionado pelo interesse crescente evidenciado por outras áreas do saber e pela própria sociedade em geral, em consequência da crescente consciencialização para com os problemas e discussões relacionadas com o ambiente, que se multiplicaram a partir dos anos 70. 37 De fato, outras áreas do conhecimento, como a Arquitetura (da Pai- sagem), a Ecologia (da Paisagem), entre outras, têm tomado a paisagem como objeto de estudo, abordando-a a partir de pontos de vista diferencia- dos, apoiando-se em metodologias diversificadas e também com base em objetivos muitas vezes distintos. Por outro lado, o termo paisagem tornou-se, ao longo dos tempos e principalmente nas últimas décadas, um termo vulgar (ou vulgarizado), devido, essencialmente, a uma utilização indiscriminada, abusiva e muitas vezes descontextualizada do próprio conceito que lhes está subjacente1. O conceito de paisagem apresenta-se com contornos pouco definidos, prestando-se, portanto, a possíveis desvirtualizações, que têm fomentado, recentemente, alguma preocupação por parte de investigadores de várias áreas científicas (Geografia, Biologia, Agronomia, Arquitetura...). Não sendo, no entanto, objetivo deste texto uma exploração exaustiva das diferentes perspetivas de abordagem e estudo da paisagem, nem dos problemas e desafios que a sua investigação enfrenta, faremos um breve enquadramento das suas principais linhas de evolução, focando-nos, de seguida, nos principais contributos da ciência geográfica em Portugal e aportes desenvolvidos em áreas conexas, com implicações nos estudos ge- ográficos. 1. CONTEXTO INTERNACIONAL DE EVOLUÇÃO DOS ESTUDOS DA PAISAGEM A utilização do termo “paisagem” surge inicialmente relacionado com a arte e a pintura, sobretudo durante o Renascimento, através dos traba- lhos de pintores flamengos como Dürer, Rubens, Rembrandt, entre outros, ganhando grande difusão. A paisagem aparece como objeto de retratação e não apenas como enquadramento do sujeito a representar na pintura, definindo-se uma conceção estética da paisagem. A representação da paisagem através da pintura e a sua consideração 1 Georges Bertrand refere a este respeito: “Paysage, un mot vivant, quotidien, que chacun utilise à sa guise et qui peut sembler vieillot, insipide, ou bien trop romantique. Il faut se laisser guider par l’usage social, et son brusque renouvellement qui en fait un mot fort et mobilisateur, un maître-mot de la société actuelle. Mass media, discours politico-technocratique, vocabulaire scientifique ensuite, multiplient les références à un paysage protéiforme, indéterminé, indéter- minable. Paysage, paysager, étiquettes de garantie, accolés à n’importe quel produit à vendre: résidence secondaire, quartier neuf, bureau d’affaires, espace vert... ou publication scientifique.” (1978, pág. 240) 38 como expressão de um território e como conceito, traduz uma nova forma de ver o mundo (Fadigas, 2007) e introduz o conceito de natureza na socie- dade. Fadigas (2007) refere a origem etimológica da palavra paisagem do latim pagensis (sinónimo daquele que vive no campo) e do francês pays (relativo a um território rural específico), afirmando que “a paisagem é, por extensão, a representação dessa realidade territorial” (pág. 123). Citando Bermingham (1994), o autor aponta que “o território envol- vente passou a fazer parte da realidade social e cultural do Renascimento e da forma de ela se representar a si própria” (pág. 123). É somente no século XVIII que Humboldt, considerado o pai da Geo- grafia, utiliza o termo “paisagens naturais”, designando, deste modo, áreas hom*ogéneas, caracterizadas essencialmente pela morfologia do terreno e cobertura vegetal, que lhes conferia uma fisionomia própria. A paisagem aparece, então, estreitamente relacionada com as ciências naturais. Posteriormente, seguindo uma linha de pensamento iniciada, nos finais do século XIX e inícios do século XX, por Passarge, e baseada na análise e estudo da paisagem sob o ponto de vista estrutural, Carl Troll dá forma à “Ecologia da Paisagem” (mais tarde por ele designada “Geo-ecologia”), definindo-a como “the study of the physico-biological relationships that go- vern the different spatial units of a region” (Forman e Godron, 1986, pág. 7). Seguindo, de certa forma, a mesma linha de pensamento, Carl Sauer, geógrafo americano, aponta o termo “paisagem” como aquele capaz de conferir uma unidade conceptual da Geografia, caracterizando a paisagem como uma “associação de factos peculiarmente geográficos”, “uma área constituída por associações distintas de formas, tanto físicas como cultu- rais” (1969, pág. 321). Na realidade, a paisagem serviu, no início do século XX, como um con- ceito integrador (Salgueiro, 2001), face ao perigo eminente de rutura entre a geografia humana e geografia física, traduzindo “interações entre os ele- mentos do mundo físico e entre estes e os grupos humanos” (pág. 42). Nas últimas décadas da segunda metade do século XX, em função da diversificação e multiplicação dos métodos de análise da paisagem, veri- fica-se, também, o aparecimento de novas perspetivas e abordagens da paisagem. Com efeito, a paisagem passa a ser abordada segundo diferentes pon- tos de vista (Almeida, 1997). Uma dessas abordagens considera a paisagem como o objeto principal da investigação (paisagem-objeto). Inclui-se nesta linha de pensamento a escola soviética, que deu seguimento aos estudos de Dokoutchaev. 39 Também a Ecologia da Paisagem se enquadra nesta corrente. Preo- cupados com a necessidade de ordenamento do território, os estudiosos partem de uma base essencialmente ecológica, considerando os aspetos relacionados com a vegetação e o uso do solo e suas relações com o meio em que se inserem. Deste modo, Forman e Godron, no seu Landscape ecology (1986), de- finem a paisagem como “uma porção de território heterogéneo composto por conjuntos de ecossistemas em interação que se repetem de forma si- milar” (pág. 11). Podem igualmente incluir-se no âmbito da análise da paisagem-objeto os estudos desenvolvidos por McHarg, que deram origem à “Arquitetura Paisagística”. Neste sentido, McHarg parte de pressupostos ecológicos e sociais, aos quais associa critérios políticos, económicos e técnicos, direcio- nados numa lógica do planeamento da paisagem (McHarg, 1969). Outro tipo de abordagem, diametralmente oposto ao anteriormente referido, considera o sujeito que observa a paisagem o elemento central da análise da mesma, ou seja, considera-se como objeto de estudo a pai- sagem percebida. Dos diversos autores que seguiram esta linha de pensamento (por exemplo, Kevin Lynch, D. L. Linton, K. D. Fines ou A. Bailly) salienta-se o carácter subjetivo decorrente das análises de valoração da paisagem reali- zadas sob a ótica do observador. A paisagem surge como um produto dos juízos de valor, sempre subjetivos e orientados por padrões culturais, atribu- ídos pelo observador a um determinado espaço territorial. Uma terceira abordagem apresenta objetivos baseados igualmente na lógica do planeamento do território, mas não centrados apenas nos ele- mentos ecológicos, recorrendo também aos valores sociais, económicos e culturais. Nesta perspetiva, a análise da paisagem “decorre da síntese entre os dados ecológicos, resultantes da distribuição e dinâmica dos elementos naturais, mais os introduzidos pelo homem, e os elementos percetuais ex- traídos duma avaliação subjetiva das unidades de paisagem em causa. É uma análise globalizante, onde se pretende apreender tanto os dados que respeitam ao meio como os que respeitam às maneiras de viver esse meio e de o sentir” (Almeida, 1997, pág. 17). Nesta linha de pensamento insere-se, por exemplo, J. P. Deffontaines, que define paisagem como uma “porção de território visto por um obser- vador, onde se inscreve uma combinação de factos e de interações de que se percebe num determinado momento apenas o resultado global” (Def- fontaines, 1985, pág. 43). Também G. Bertrand desenvolve uma análise da paisagem enquadra- 40 da nesta corrente, introduzindo na Geografia o conceito de “geossistema”2. Para este autor o conceito de paisagem vai aparecer estreitamente ligado ao de geossistema, considerando o primeiro como um geossistema da for- ma como é percebido pelo observador. Apesar de inicialmente definir a paisagem através de uma perspetiva naturalista, Bertrand acaba por, mais tarde, considerar a paisagem como uma “estrutura cada vez menos ecoló- gica e social e cada vez mais um processo em transformação” (Bertrand, 1978, pág. 249). Da análise das diferentes abordagens que se foram desenvolvendo, Almeida (1997) definiu algumas “ideias-força” presentes em todas elas: a visão, elemento indispensável para a perceção da paisagem, que é sempre algo exterior ao observador; a organização, uma vez que os componentes da paisagem apresentam uma distribuição